domingo, 14 de dezembro de 2025

A PESTE NO COLAPSO DA IDADE DO BRONZE, por A. Felisberto.

 



Figura 1: "A Praga das Trevas" (em inglês, The Plague of Darkness), criada pelo ilustrador francês do século XIX, Gustave Doré illustrations for La Grande Bible de Tours.

“Certa vez, quando uma peste irrompeu no Egito. A causa da visitação foi geralmente atribuída à ira dos deuses. Como muitos estrangeiros viviam no Egito e observavam costumes diferentes na religião e nos sacrifícios, aconteceu que o culto ancestral dos deuses estava a ser abandonado no Egipto. Os egípcios eram, portanto, de opinião que não obteriam qualquer alívio para o mal, a não ser que afastassem o povo de origem estrangeira. Quando foram expulsos, a parte mais nobre e corajosa deles, como alguns dizem, sob o comando de nobres e renomados líderes, Danaus e Cadmus, veio para a Hélade; mas a grande maioria deles migrou para a terra, não muito distante do Egipto, que hoje se chama Judeia. Estes emigrantes foram liderados por Moisés, que foi o mais distinto entre eles pela sua sabedoria e bravura.” -- Hecateu de Abdera

Entre os séculos XIII e XII a.C., o Mediterrâneo oriental viveu uma das maiores convulsões da sua história. Civilizações que durante séculos tinham florescido — os Hititas na Anatólia, os Micénios na Grécia, os reis sacerdotes de Ugarit na Síria, os altivos senhores de Troia nas costas levantinas do mar Egeu — desapareceram quase em simultâneo. A arqueologia mostra cidades destruídas por fogo, palácios abandonados de forma súbita e deslocamentos populacionais em massa. O que parecia uma rede estável de culturas interligadas entrou em colapso num espaço de poucas décadas.

Os textos antigos preservam memórias desse caos. Cartas diplomáticas hititas revelam reis desesperados, incapazes de alimentar o seu povo, a pedir cereais ao Egipto. Registos egípcios falam de invasões dos chamados “Povos do Mar”, que atacaram portos e rotas comerciais. A tradição bíblica, no livro do Êxodo, menciona pragas e doenças que devastaram populações. Os poemas gregos, como a Ilíada, guardam ecos de guerras e destruições que coincidem com este período.

Há cerca de 5 mil anos, uma linhagem hoje extinta da bactéria Yersinia pestis se espalhou por toda a Eurásia, região formada pelos continentes da Europa e da Ásia. Durante quase três milênios, ela percorreu milhares de quilômetros e infectou diversas comunidades humanas antes de desaparecer.

Apesar de pertencer à mesma espécie que, muitos séculos depois, causaria a Peste Negra, essa cepa antiga não possuía as adaptações genéticas que permitiam a transmissão por pulgas de ratos.

A descoberta foi feita a partir da análise de dentes e ossos de 23 animais da Idade do Bronze. Um dente de ovelha, identificado como ARK017, apresentou sinais da bactéria.

A cepa encontrada era praticamente idêntica à que infectou um humano da mesma região e período, ambos ligados à cultura Sintashta-Petrovka – sociedades pastoris conhecidas pelo manejo extensivo de gado: cavalos e ovelhas.

As análises genéticas indicam que tanto humanos quanto ovelhas foram infectados pela mesma população bacteriana.

Os cientistas acreditam que as ovelhas tenham funcionado como “hospedeiros-ponte”, adquirindo Y. pestis possivelmente ao entrar em contato com carcaças de roedores ou outros animais selvagens contaminados.

Esse cenário, explicam os autores, ainda é observado hoje em partes da Ásia Central: ovelhas podem ingerir ou lamber carcaças de marmotas infectadas e, mesmo sem apresentar sintomas claros, transmitir a bactéria para humanos pelo consumo da carne ou pelo contato durante o manejo.

Diferentemente das pandemias históricas, em que pulgas de ratos desempenharam um papel central, esta peste provavelmente se espalhou por rotas mais variadas, incluindo contato direto com animais infectados.

Isso também explica por que, no registro arqueológico, não há sinais de grandes covas coletivas associadas a surtos dessa linhagem, mas sim de enterros individuais, sugerindo episódios localizados.

O contexto cultural ajuda a entender como a peste pré-histórica podia se espalhar por milhares de quilômetros. As comunidades Sintashta-Petrovka eram nômades ou semi-nômades, usavam cavalos para tração e transporte, e conduziam grandes rebanhos por extensas áreas. Essa mobilidade aumentava o contato com animais selvagens que poderiam carregar a bactéria.

Além disso, esses pastores não cultivavam cereais, o que os poupava de atrair roedores urbanos como os que, séculos depois, seriam cruciais na Peste Negra.

Ainda assim, tinham contato com roedores em áreas de pastagem, criando oportunidades para infecções.

“Daí em diante, foi apenas mais um pequeno salto para os humanos”, disse Warinner, professora de Arqueologia Científica em Harvard e coautora do estudo.

A análise revelou que a linhagem manteve-se geneticamente estável ao longo de milhares de anos e de uma área que se estendia da Europa Ocidental à Mongólia.

Ela não apresentava as adaptações que tornaram a peste medieval tão letal, mas ainda assim era capaz de causar alta mortalidade.

Os cientistas detectaram sinais de seleção purificadora – um tipo de pressão evolutiva que elimina mutações prejudiciais – e padrões genéticos semelhantes em infecções de humanos e da ovelha, sugerindo que nenhum dos dois era o reservatório original da bactéria.

O hospedeiro principal, capaz de manter a linhagem por tanto tempo e espalhá-la em tão larga escala, permanece desconhecido. Entre as hipóteses estão aves migratórias, capazes de transportar patógenos a grandes distâncias.

Embora esta linhagem específica esteja extinta, a Y. pestis continua existindo em focos endêmicos na África, Ásia, Américas e, em menor escala, na Europa. Hoje, são registrados de mil a dois mil casos por ano no mundo.

Não há motivo para alarme em relação ao contato com gado ou animais de estimação. Mas o estudo serve como lembrete de que a domesticação de animais sempre esteve ligada à emergência de doenças humanas.

“A lição é que os humanos nunca estiveram sozinhos nas doenças, e isso é verdade há milhares de anos”, disse Light-Maka à CNN. “As formas como estamos mudando drasticamente o meio ambiente e a conexão... Leia mais em: https://super.abril.com.br/historia/novo-estudo-descobre-o-que-causou-um-surto-de-peste-negra-na-idade-do-bronze/

Hoje começamos a suspeitar de que, por trás das guerras e da fome, houve também uma epidemia de peste bubónica. De facto, analises genéticas modernas de ossos e dentes humanos datados de há cerca de 3.000 anos revelaram a presença da bactéria Yersinia pestis. Esta linhagem era mais “primitiva” do que a que causou a Peste Negra medieval, pois não tinha ainda as mutações que permitiam a transmissão eficiente por pulgas de ratos. Mesmo assim, espalhou-se por milhares de quilómetros, desde a Ásia Central até à Europa, provavelmente através de contacto directo com animais domésticos como ovelhas, que funcionaram como hospedeiros intermediários.

A origem geográfica da Peste Justiniana permanece desconhecida. Investigações moleculares devem esclarecer esse ponto. Com base em suas características de fermentação, três tipos variantes ou biovares, três linhagens de Y. pestis, foram identificadas em 1951. A literatura biomédica tem repetidamente associado esses três biovares às três grandes pandemias: o biovar Antiqua é considerado a cepa da Peste Justiniana e, até o momento, foi encontrado principalmente na África e na Ásia. O biovar Medievalis, presumivelmente a cepa de 1347 do patógeno, está associado à Ásia Central (talvez ao Curdistão). O biovar Orientalis é bem documentado. Corresponde à pandemia que ganhou atenção internacional em 1894 e tem origem no Leste Asiático. O Orientalis ocorre atualmente no Vietnã, na África, nos Estados Unidos e na América do Sul. Recentemente, evidências moleculares foram apresentadas em apoio à identificação dos três biovares, o que parece também indicar idades para eles que se conformam a esse esquema.45 No entanto, os limitados marcadores genéticos utilizados para diferenciar os biovares até o momento podem ainda se mostrar insuficientes. Uma quantidade substancial de pesquisas realizadas na antiga União Soviética e na China indica um quadro mais complexo de cepas do que aquelas em que os pesquisadores ocidentais se concentraram até agora, e um quarto biovar foi proposto.46 Para os historiadores, as origens geográficas e a disseminação da Pandemia Justiniana são de grande interesse, pois nos dizem muito sobre as redes de comunicação e a organização económica do Império Romano tardio e seus vizinhos. (...)

O DNA da Y. pestis sofre mutações com facilidade e frequência. A perspectiva aberta por uma abordagem filogenética que se aproveita desse fato é tão fascinante quanto árdua. Se os dados se mostrarem suficientemente abundantes, não seria surpreendente descobrir que o DNA de diferentes ondas da pandemia exibe diferentes constelações de mutações. Dados recentes sobre o biovar Orientalis são encorajadores nesse sentido, pois já foi demonstrado que, mesmo nos últimos 100 anos, ocorreram mudanças significativas no genoma.⁶² Em outras palavras, o DNA da Y. pestis de uma vítima individual poderia, por si só, atribuir essa vítima, e outras na mesma sepultura, a uma onda específica da pandemia. Os dados da cepa específica de DNA poderiam ser comparados às evidências cronológicas independentes da estratigrafia, dos objetos funerários e do Carbono-14.⁶³ Assim, pode ser possível melhorar a resolução do nosso mapa de DNA antigo da peste entre 541 e o século VIII e mapear com precisão as ondas individuais da pandemiaÉ concebível que, realizadas em larga escala, essas análises filogenéticas possam produzir ainda mais informações. Se conseguirmos amostras suficientes e de qualidade adequada, elas poderão mostrar, por exemplo, que o DNA da Y. pestis de um determinado grupo de vítimas em Cartago apresenta não apenas as mutações identificadas para a terceira onda de infecção em Alexandria, mas também mutações adicionais conhecidas apenas para a terceira onda de infecção em Constantinopla. Tal padrão implicaria que o patógeno dessa onda chegou a Cartago vindo de Alexandria apenas por meio de Constantinopla. Por trás desse padrão, poderíamos vislumbrar as formas fantasmagóricas de navios que outrora navegaram do Egito para a capital imperial, e de outros navios que navegaram da capital para a metrópole africana, enquanto os roedores mortais se alastravam em seus porões. É perfeitamente imaginável que, além das amplas rotas e padrões de transmissão a longa distância do patógeno da peste, possamos discernir as mudanças nas constelações dos movimentos de navios de longa distância nos impérios romano tardio e islâmico inicial com uma precisão e um detalhe que tornariam obsoletos meus próprios esforços recentes para fazê-lo a partir de fontes escritas e arqueológicas.64 (...)

Ainda assim, a crença errônea de que não havia ratos romanos, juntamente com a convicção de que a Peste Justiniana era de fato bubônica, estimulou pesquisadores franceses a buscarem outro vetor artrópode. O resultado foi uma teoria que defendia o papel da infecção de pessoa para pessoa transmitida pela pulga humana (P. irritans), baseada inicialmente em pesquisas no Norte da África na década de 1940. A base empírica e experimental dessa teoria foi agora definitivamente destruída. Em seu lugar, reconhece-se que N. fasciatus pode muito bem ter desempenhado o papel fundamental na transmissão de Y. pestis de roedores infectados na Europa.72 Mas mesmo considerando o papel desempenhado por N. fasciatus, será necessário prestar muita atenção às delicadas interações entre clima e ecologia, que são indispensáveis para a compreensão dos vetores insetos.73

Ratos e pulgas levam, mais cedo ou mais tarde, à última grande questão. Para onde foi a Peste Justiniana? A arqueologia, as mudanças nas condições ecológicas e a biologia molecular apontam para extinções locais ou mais amplas de populações de ratos? Alguns acreditam que as colônias de ratos desapareceram. Após a Antiguidade Tardia, evidências arqueológicas com datação segura da presença de ratos na Europa surgem, até agora, apenas no século IX.74 Se tal extinção hipotética teria sido causada pela própria peste ou ocorreu em conjunto com outros fatores, ela poderia explicar o desaparecimento do contágio na segunda metade do século VIII.75 Também há indícios de que os ratos desenvolvem imunidade à Y. pestis; Se isso ocorreu em escala suficiente para fomentar a imunidade de grupo nas regiões afetadas, poderia explicar por que o patógeno deixou de atacar as populações humanas do Mediterrâneo.76 Precisamos também considerar a possibilidade de que a peste possa ter contribuído para o êxodo rural dos sobreviventes humanos das cidades em declínio da Antiguidade Tardia, assim como experiências epidêmicas semelhantes esvaziaram antigas cidades iroquesas na América do Norte do século XVII.77 Paulo, o Diácono, descreve como os habitantes abandonaram Pavia, pelo menos temporariamente, durante um surto de peste no século VII.78 O êxodo rural teria privado as colônias de roedores da massa humana necessária para que prosperassem em grande número, o que favorece a proliferação da peste. As evidências de quarentenas de fato ou reais e políticas de isolamento no Mediterrâneo do início da Idade Média merecem uma análise renovada, pois alguns especialistas na segunda pandemia atribuem a essas políticas um papel importante no fim das pestes medievais e do início da Idade Moderna.79 Os contemporâneos estavam cientes da ligação entre a chegada de navios, a movimentação de mercadorias e os surtos de peste. A crença dos habitantes de Gaza de que navios mágicos espalhavam a infecção nas praias implica tal ligação, e a descrição de Gregório de Tours sobre a chegada da peste com um navio mercante da Espanha a torna explícita.80 O estabelecimento de uma quarentena nas estradas da Gália que levavam ao mar é atestado diretamente por uma carta que alerta o bispo de Cahors sobre um surto de peste em Marselha, por volta de 640, e o insta a bloquear viagens, especialmente de mercadores.81 Se as estruturas administrativas frouxas da Gália merovíngia implantaram um cordão sanitário contra a peste, os impérios bizantino e árabe, mais burocratizados, poderiam muito bem ter feito o mesmo. – Toward a Molecular History of the Justinianic PandemicMichael McCormick.

Contexto dos Povos do Mar e a peste

O padrão epidémico da peste existia desde cedo: mobilidade populacional, contacto com animais, stress ambiental e fome criavam surtos recorrentes. Sem o gene ymt, a bactéria não sobrevivia nas pulgas, limitando a transmissão a carne contaminada, carcaças ou hospedeiros‑ponte como ovelhas. Os registos arqueológicos mostram enterros individuais, não grandes covas coletivas, sinal de surtos restritos. O ciclo roedor → pulga → humano só se estabeleceu quando sociedades cerealíferas entraram em crise, permitindo a proliferação de roedores urbanos. A mutação genética foi o passo que transformou surtos localizados em pandemias devastadoras.

A arqueologia não oferece uma fotografia congelada da mutação, mas ossos e dentes com DNA antigo revelam diferenças genéticas entre épocas. Linhagens da Idade do Bronze não tinham adaptações para transmissão por pulgas; linhagens posteriores já as apresentam. A genética comparativa, alinhando centenas de genomas, permite reconstruir árvores evolutivas e estimar quando surgiram as mutações. A datação indireta e a arqueologia cultural — como o aparecimento de celeiros — ajudam a situar esse salto.

Até hoje, o DNA mais antigo da Yersinia pestis foi encontrado em restos humanos de 5.000 anos e numa ovelha domesticada de 4.000 anos em Arkaim, Rússia. Não existem registos confirmados em roedores pré‑históricos, embora sejam considerados reservatórios prováveis. Durante a Idade do Bronze na Ásia Central, comunidades pastorís sem celeiros limitavam a presença de roedores urbanos. Já no Mediterrâneo oriental, entre os séculos XIII e XII a.C., economias cerealíferas como as dos HititasMicenas e Egito possuíam grandes armazéns. A crise dos Povos do Mar provocou fome e colapso logístico, multiplicando roedores em ambientes urbanos e palacianos. O ecossistema para pulgas de ratos já estava presente.

O detalhe crítico é que a Y. pestis da Idade do Bronze ainda não tinha o gene ymt, essencial para transmissão eficiente via pulgas. Mesmo havendo roedores urbanos, a peste não era bubónica de forma explosiva. O padrão epidémico estava lá — fome, mobilidade, contacto com animais — mas faltava o salto evolutivo. Só na Idade do Ferro e sobretudo na Idade Média, com mutações adaptativas, a bactéria passou a usar pulgas como vetor principal. Durante a crise dos Povos do Mar, o palco estava montado — celeiros, roedores, fome, mobilidade — mas a peça genética ainda não tinha entrado em cena.

A Idade do Ferro, iniciada por volta de 1200 a.C., trouxe cidades mais densas, celeiros de cereal e maior presença de ratos. Este novo cenário preparou o terreno para formas mais explosivas da peste. A grande questão científica é quando exactamente a bactéria adquiriu as mutações que permitiram a transmissão bubónica. Se no fim da Idade do Bronze, aproveitando o colapso dos celeiros, ou apenas mais tarde. O reservatório original continua incerto: humanos e ovelhas não parecem hospedeiros naturais, e embora os roedores sejam candidatos óbvios, falta prova genética diretaFatores ambientais como secas, migrações e guerras podem ter acelerado o salto evolutivo.

A crise dos Povos do Mar coincide com o limiar em que a peste podia ter dado o salto evolutivo. O contexto era perfeito: fome, celeiros em colapso, roedores proliferando, mobilidade bélica e populacional. Bastava uma mutação genética, como a aquisição do gene ymt, para transformar surtos localizados em pandemia mortífera. A Yersinia pestis já existia desde a Idade do Bronze, mas sem carácter explosivo; o salto para a peste bubónica parece ter ocorrido no início da Idade do Ferro, talvez já durante essa crise.

No Mediterrâneo oriental, os celeiros palacianos concentravam ratos e pulgas, criando condições inéditas para novas vias de transmissão. Esse ecossistema permitiu à bactéria dar o salto para um novo vector, preparando o terreno para epidemias que séculos mais tarde culminariam na Peste Negra medieval. A explosão epidémica resulta de múltiplos fatores: mutação genética, colapso alimentar, ecossistemas densos de roedores, mobilidade bélica e comercial dos Povos do Mar, consumo de carne de animais mortos em tempos de escassez e populações enfraquecidas por seca e guerra. Não há uma única explicação, mas uma combinação de circunstâncias que transformou uma bactéria antiga em agente pandémico.

A peste agravou comunidades já fragilizadas por crises agrícolas e secas prolongadas. Aldeias foram abandonadas, populações migraram em massa, e impérios como o Hitita perderam a capacidade de sustentar os seus exércitos. Os celeiros, ao deixarem de ser abastecidos, tornaram‑se focos de roedores e multiplicaram surtos epidémicos. O resultado foi uma “tempestade perfeita”: guerra, invasões, fome e epidemias precipitaram o fim da Idade do Bronze. O colapso não foi apenas militar ou político, mas também demográfico e cultural: escritas desapareceram, redes comerciais foram desfeitas, e o Mediterrâneo entrou numa fase de fragmentação que só mais tarde daria origem às culturas da Idade do Ferro.

Os poemas homéricos, como a Ilíada, falam de pragas enviadas pelos deuses como castigo. É possível que esses relatos tenham raízes em surtos epidémicos reais que acompanharam os conflitos da Guerra de Troia. Fome, guerra, migrações e epidemias entrelaçaram-se, criando uma memória cultural de catástrofe que ficou gravada nos mitos e tradições.

No impacto cultural da crise dos Povos do Mar, a peste deixou de ser apenas uma doença episódica e passou a ser reconhecida como força colectiva, inscrita na memória literária e religiosa. A ideia de peste como castigo divino ou destino comum nasce precisamente nesse limiar histórico, quando a doença começa a comportar-se como pandemia. É nesse contexto que Troia se torna um marco: a Guerra não foi apenas um confronto militar, mas também um palco epidémico. A peste surge logo no início da Ilíada, enviada por Apolo contra os aqueus, e não como detalhe secundário, mas como elemento fundador da narrativa épica. Esse lugar inaugural mostra que a humanidade já percebia a peste como fenómeno histórico e mítico, capaz de moldar guerras e memórias.

Se o salto evolutivo da Yersinia pestis ocorreu nesse período, então o impacto cultural foi imenso. A doença deixou de ser restrita a surtos localizados e tornou-se um acontecimento coletivo, gravado nos mitos e tradições. A fome generalizada, o colapso dos celeiros, a mobilidade bélica e os deslocamentos populacionais criaram o cenário perfeito para que a peste se tornasse explosiva. Os roedores urbanos proliferaram nos celeiros em crise, e a mutação genética que permitiu a transmissão por pulgas pode ter surgido precisamente nesse momento. A peste aparece assim como força histórica, inscrita tanto nos ossos e dentes que guardam o DNA antigo, como nos versos que abriram a epopeia homérica.

O padrão pestilífero começa aqui: antes havia surtos restritos, mas a partir da crise dos Povos do Mar a peste comporta-se como pandemia. O impacto cultural é inseparável do biológico. A doença passa a ser vista como destino colectivo, como castigo divino, como memória épica. Troia, nesse sentido, é o primeiro grande palco onde a peste se afirma não só como realidade histórica, mas como mito fundador da civilização mediterrânica.

O debate sobre a presença da peste na Antiguidade Clássica ganhou relevo quando J.P. Griffin defendeu que a doença já era conhecida muito antes da Idade Média. Para sustentar a sua hipótese, recorreu a passagens bíblicas do Primeiro Livro de Samuel, tanto na tradução da Septuaginta como na Vulgata. Na Vulgata, lê-se que “apareceram ratos na sua terra, e morte e destruição por toda a cidade”, enquanto a Septuaginta descreve “uma erupção de tumores” que atingiu jovens e velhos, especificando que os tumores surgiam na virilha. Griffin interpretou estas descrições como sinais claros da peste bubónica, associando os bubões à doença e os ratos ao seu modo de transmissão. Para ele, a associação entre peste, ratos e bubões já estava estabelecida na Antiguidade, e os filisteus, ao devolverem a Arca da Aliança acompanhada de “cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro”, admitiam simbolicamente a ligação entre a epidemia e esses elementos.

A resposta de W.M.S. Russel foi concisa e crítica. Considerou a tese de Griffin “quase certamente errónea”, argumentando que o rato preto (Rattus rattus) só teria chegado ao Egito vindo da Índia no primeiro ou segundo século da nossa era, após o reconhecimento das monções e a intensificação do comércio marítimo. Se assim fosse, na época bíblica não existiriam ratos pretos em número suficiente para sustentar a transmissão da peste bubónicaRussel apoiou-se também na filologia: a palavra hebraica ophalim, usada em 1 Samuel, foi traduzida na tradição massorética como “hemorroidas”, e não como tumores pestilentos. Para ele, o flagelo descrito nos textos seria antes uma complicação de disenteria bacilar, e não a peste bubónica.

Durante décadas, esta divergência permaneceu aberta, mas a arqueologia e a genética vieram trazer novos elementos. Descobertas em Tell-Amarna revelaram restos fossilizados de Yersinia pestis datados de cerca de 1350 a.C., ou seja, anteriores aos relatos bíblicos. Pesquisas no Vale do Nilo confirmaram que o Rattus rattus já estava presente no Egito nesse período, provavelmente introduzido por navios vindos da Índia. Coprólitos de rato foram encontrados em grãos armazenados num túmulo do Antigo Reino, hoje preservados no Museu de Turim, e pinturas murais e papiros mostram que os egípcios conheciam bem estes animais. Além disso, o panteão egípcio incluía Sekmet, deusa da peste e da morte, e o papiro Edwin Smith, datado do século XV a.C., já invocava os deuses contra epidemias.

Após o Êxodo, a peste espalhou-se para Canaã. No Primeiro Livro de Samuel, capítulos 5 e 6, os Filisteus são descritos como atingidos por tumores e por uma invasão de ratos, uma imagem que corresponde ao ciclo da peste bubónica. Este episódio mostra como a mobilidade populacional funcionou como vetor de propagação, levando a doença do Egipto para o Levante. Relatos posteriores mencionam casos até na Síria, como o de um condenado atingido pela peste numa prisão, sugerindo que a epidemia se espalhou por diferentes regiões do Antigo Oriente.

Em Hatussa, capital do Império Hitita, textos administrativos falam de fome e escassez de cereais. Pouco depois, a cidade foi abandonada e destruída. A queda de Hatussa coincide com a destruição de Troia VIIa e de Ugarit, todas com camadas de incêndio que testemunham a violência da crise. Nas inscrições de Medinet Habu, Ramsés III descreve os ataques dos Povos do Mar, uma coligação de tribos vindas do Egeu. Sem este testemunho, a crise seria lembrada apenas como mito, tal como a Atlântida. Os Povos do Mar eram provavelmente refugiados de regiões em colapso, deslocados pela fome e pela peste, e a sua mobilidade intensificou a propagação da doença.

No final da Idade do Bronze observa‑se uma transformação cultural abrupta: a difusão da cremação. Durante milénios, o padrão funerário dominante foi a inumação — em covas, cistas de pedra, grutas ou sepulcros megalíticos, muitas vezes acompanhados de espólio funerário. Só na transição para a Idade do Ferro é que a cremação se tornou prática dominante em várias regiões, representando uma rutura significativa com tradições anteriores.

Na Europa Central, por volta de 1300–1200 a.C., a Cultura dos Campos de Urnas marca o início da cremação sistemática. No Mediterrâneo, entre 1200 e 1000 a.C., relatos épicos como a Ilíada já descrevem cremações de guerreiros. Na Índia védica, desde cerca de 1500 a.C., a cremação integrava uma cosmologia espiritual de purificação pelo fogo. Apesar de contextos distintos, estas datas alinham‑se no mesmo arco temporal — o colapso da Idade do Bronze e o início da Idade do Ferro — sugerindo um fenómeno global. Guerras, fome, mobilidade populacional e epidemias criaram pressões semelhantes, e cada cultura respondeu com a mesma solução: o fogo como alternativa ao enterro subterrâneo.

Arqueologicamente, a mudança é considerada “antinatural”, pois rompe abruptamente com milénios de tradição. Não surge de forma gradual, mas como resposta a crises sociais e sanitárias, possivelmente ligadas às epidemias, e também como reflexo de novas crenças religiosas. A peste pode ter levado comunidades a adotar a cremação para conter a propagação da doença a partir dos cadáveres. Guerras e fome favoreceram cremações coletivas, mais práticas do que enterros individuais. Populações em movimento, como os Povos do Mar, recorreram à cremação por ser rápida e menos dependente de espaço fixo.

Exemplos confirmam esta transição: em Torre Velha 12 (Serpa) persistem sepulturas escavadas no solo da Idade do Bronze; na Lorga de Dine (Vinhais) a inumação manteve‑se no Calcolítico e Bronze; já na Europa Central surgem necrópoles de urnas, cemitérios onde restos cremados eram depositados em recipientes cerâmicos. O fogo, associado à purificação e à ligação ao divino, tornou‑se símbolo de uma nova visão espiritual. A transição funerária coincide com crises de fome, guerras e epidemias, e com o início da Idade do Ferro, integrando um pacote mais amplo de mudanças sociais, religiosas e tecnológicas.

A arqueologia comparativa mostra que a cremação surgiu em épocas diferentes em várias regiões, indicando que não foi fenómeno único, mas prática emergente em resposta a pressões sociais ou religiosas. Para os historiadores clássicos, a explicação dominante continua a ser cultural e espiritual. Mas pelo prisma epidemiológico, a cremação pode ser lida como resposta sanitária a surtos pestilíferos — uma nova interpretação que dignifica o impacto das epidemias na transformação dos rituais.

A limpeza ritual pelo fogo era a mais drástica e assustadora porque implicava a destruição dos corpos e impedia o mito da ressurreição da carne. Diferentemente da água, da terra ou do ar, que regeneravam ou preservavam, o fogo não apenas purificava — ele destruía. A cremação reduzia o corpo a cinzas, anulando a sua integridade física, e isso era visto como problemático em tradições que acreditavam na ressurreição da carne, pois eliminava a matéria que deveria ser restaurada. Ao mesmo tempo, o fogo era entendido como o elemento mais poderoso de purificação, capaz de eliminar qualquer impureza ou contaminação, inclusive pestilências.

Para as culturas semitas e egípcias, a cremação era inadmissível. A integridade corporal era essencial para a vida eterna, e reduzir o corpo a cinzas significava negar a possibilidade de ressurreição. O judaísmo antigo via o corpo como portador de santidade, destinado a ser restaurado no fim dos tempos. No Egipto, a mumificação preservava cuidadosamente o cadáver para garantir a sobrevivência da alma. Para estas tradições, destruir o corpo pelo fogo era uma blasfémia. Já para as culturas indo‑europeias, o fogo era visto como purificação e libertação espiritual. Nos poemas homéricos, os guerreiros eram cremados como sinal de heroísmo, e na cosmologia védica a cremação era o rito central.

A súbita substituição da inumação subterrânea pela cremação podia parecer estranha, mas os arqueólogos não a interpretam como uma anomalia. Ao longo da pré‑história já se tinham verificado mudanças abruptas nos rituais funerários, e por isso esta transição é entendida como uma transformação cultural e religiosa. O fogo, associado à purificação, à transformação e à ligação ao divino, passou a ser visto como o meio mais poderoso de libertação espiritual. A adoção da cremação coincide com crises de fome, guerras e epidemias, e com o início da Idade do Ferro, sendo considerada parte de um conjunto de mudanças sociais mais vasto, ligadas a novas crenças, novas tecnologias e novos modos de vida.

Esta divergência marca uma cisão civilizacional profunda. Enquanto semitas e egípcios mantinham o padrão da inumação subterrânea, os indo‑europeus adotavam a cremação em massa, interpretando o fogo como passagem espiritual. A grande ruptura entre estas visões coincide com o colapso da Idade do Bronze, nos séculos XIII–XII a.C., e há fortes indícios de que uma crise sanitária esteve no centro desse processo. Epidemias pestilíferas, como a peste bubónica em fase inicial, podem ter precipitado a adoção da cremação como medida radical de purificação, impedindo a propagação da doença pelos cadáveres.

O impacto global foi enorme. O fim da Idade do Bronze não foi apenas militar ou económico, mas também sanitário e cultural. A Idade do Ferro nasce com sociedades transformadas, novas tecnologias, novas crenças e novos rituais funerários. A memória desse trauma ficou gravada nos mitos: a Ilíada preserva o cenário de peste e destruição pelo fogo, enquanto as tradições semitas reforçam a sacralidade do corpo enterrado. O fogo, visto como gesto purificador imposto por Apolo, pode encobrir uma necessidade prática não explicitada: a contenção de epidemias. O mito religioso traduziu em linguagem divina aquilo que, na realidade, foi uma resposta desesperada a uma crise sanitária devastadora.

Logo no Livro I da IlíadaHomero descreve a ira de Apolo contra os aqueus:

“Apolo ouviu a sua oração e desceu do Olimpo, irado no coração. O arco e a aljava ressoaram nos ombros do deus, e as flechas voaram entre o exército. Primeiro atingiu as mulas e os cães velozes, depois lançou o dardo agudo contra os homens, e continuamente ardiam fogueiras de mortos.” (Ilíada, I, 44‑52)

Aqui vemos como a peste é narrada como castigo divino: Apolo envia flechas de doença, e os fogos funerários ardem sem cessar. Para os gregos, era um ato dos deuses; para nós, olhando com lentes arqueológicas e epidemiológicas, pode ser reflexo de uma crise sanitária real. O fogo, descrito como imposição ritual, pode encobrir a necessidade prática de queimar corpos para conter a propagação da doença.

“Primeiro atingiu as mulas e os cães velozes, depois lançou o dardo agudo contra os homens, e continuamente ardiam fogueiras de mortos.” (Ilíada, I, 50-52).

Nenhum estudo sobre o impacto da pandemia da peste na religião, em particular no cristianismo ocidental, estaria completo sem mencionar a criação de um novo culto a um santo especificamente destinado a lidar com a peste: o de São Sebastião. O mais conhecido de todos os santos da peste, graças às pinturas de praticamente todos os artistas renascentistas de renome, Sebastião foi o presente da Peste Justiniana para a Peste Negra. A ligação entre Sebastião e a peste foi feita, no máximo, no ano de 680. Após relatar os surtos de peste daquele ano em Roma e em Pavia, Paulo, o Diácono, conta que um certo homem em Pavia teve uma revelação na qual foi informado de que a epidemia não cessaria ali até que um altar de São Sebastião, o Mártir, fosse erguido na igreja de São Pedro em Correntes. Assim, os habitantes de Pavia trouxeram relíquias de Roma e ergueram um altar apropriado, exatamente como a voz milagrosa havia instruído; e, de fato, a pestilência terminou. Por volta da mesma época, um mosaico representando Sebastião em trajes da corte romana e carregando uma coroa de mártir foi colocado em uma parede da mais famosa igreja de São Pedro em Correntes, a de Roma.71 Precisamos investigar como surgiu a conexão deste santo com esta epidemia. (...)

O que significam as flechas? Tanto a tradição judaico-cristã quanto a greco-romana tinham algo a dizer sobre essa questão. No Salmo 7:13, as flechas são instrumentos de punição divina: “Se alguém não se arrepender, Deus afiará a sua espada; ele armou e tensionou o seu arco; preparou a sua arma mortal, fazendo das suas flechas hastes flamejantes”. E nos primeiros versos da Ilíada, por causa dos terríveis erros cometidos por Agamenon e das súplicas daqueles a quem ele prejudicou, Apolo, filho de Zeus, “arqueiro distante e mortal” e “deus da peste”, “desceu como a noite” e lançou suas flechas carregadas de pestilência de seu arco de prata. “Ele os dizimou em massa, e as fogueiras dos cadáveres ardiam dia e noite, sem fim à vista. Durante nove dias, as flechas do deus varreram o exército.”73 Não nos cabe adivinhar se os aristocratas romanos de épocas posteriores haviam lido Homero. Referindo-se à epidemia em Roma em 590, Gregório Magno mencionou a pestilência “que despovoou esta cidade” (quae hanc urbem depopulavit) e na qual “podia-se ver com os próprios olhos as flechas caindo do céu, atingindo indivíduos.”74 Assim, por uma inversão notável, o deus grego que enviava a peste sobre as pessoas atirando flechas nelas ressurgiu no século VII como um herói cristão que, tendo sofrido inúmeras feridas de flecha e sobrevivido, agora assumia, à maneira de Cristo, as feridas de flecha (leia-se: infecções da peste) daqueles que lhe suplicavam alívio da peste. Ao longo dos séculos seguintes, o culto a Sebastião cresceu em Roma e se espalhou por outras partes da Europa. As poucas imagens de Sebastião que sobreviveram dessa época o mostram da maneira tradicional, com sua coroa de mártir, ou então como um soldado com uma lança, enquanto a cena familiar de seu corpo transpassado por flechas só se tornou popular no século XIV.75 -- Lester K. LittleLife and Afterlife of the First Plague Pandemic.

Este excerto é poderoso porque une dois elementos centrais da tua análise: a peste como força devastadora e o fogo como resposta ritual. Para os gregos, era a ira divina que se manifestava; para nós, pode ser lido como reflexo de uma crise sanitária real, em que a cremação dos corpos funcionava como contenção epidémica.

A causalidade simbólica não é apenas um vestígio do passado, mas uma força que continua viva e activa até hoje. Os mitos, símbolos e narrativas moldam a forma como interpretamos fenómenos naturais e sociais, e obrigam a ciência a confrontar‑se com eles. Quando uma explicação simbólica ganha força — seja um castigo divino, uma maldição ou uma energia vital — os cientistas são forçados a ir para o laboratório, testar hipóteses e desmontar ou confirmar aquilo que a tradição cultural consagrou.

A peste descrita como “cólera de Apolo” é um exemplo claro. Durante séculos, foi entendida como narrativa religiosa, um ato dos deuses. Só recentemente, com a arqueogenética, se revelou que por trás desse mito havia uma realidade concreta: a presença da bactéria Yersinia pestis no Mediterrâneo oriental desde a Idade do Bronze. O mito não inventou o desastre, traduziu‑o numa linguagem que fazia sentido para a comunidade. O fogo, descrito como imposição divina, pode ter sido na prática uma medida sanitária para conter a propagação da doença.

É precisamente esta força da causalidade simbólica que explica porque foi aceite e transmitida ao longo dos séculos. Se não refletisse de algum modo a realidade, não teria sobrevivido. O mito codifica fenómenos naturais em narrativas religiosas, preservando a memória cultural de crises reais, mesmo que deformadas pela linguagem mística. Para nós, hoje, o mito é uma chave de leitura indireta: não prova causalidade científica, mas indica que algo aconteceu. É uma forma de causalidade “mística” que encobre, mas também revela, a causalidade natural.

Assim, a causalidade simbólica não é falsa, mas uma tradução cultural de práticas e observações empíricas. Foi aceite porque respondia a uma necessidade prática e espiritual ao mesmo tempo. E continua a ser usada, obrigando a ciência a confrontar‑se com ela, a pô‑la em causa e a destruí‑la ou confirmá‑la. O mito preserva a memória, mas a ciência revela a sua raiz natural.

No início da Idade do Ferro, entre os séculos XIII e VIII a.C., surgem quase em simultâneo três fenómenos culturais que marcam profundamente a história: a cultura das urnas na Europa Central, o culto avéstico do fogo na Pérsia e o culto védico de Agni na Índia. Esta coincidência temporal mostra que não se tratou de fenómenos isolados, mas de respostas convergentes a uma crise civilizacional que se seguiu ao colapso da Idade do Bronze.

Na Europa Central, a chamada Cultura dos Campos de Urnas introduziu a prática sistemática da cremação. Os mortos eram reduzidos a cinzas e depositados em urnas cerâmicas enterradas em necrópoles, num gesto que rompeu com milénios de tradição de inumação subterrânea. Esta transformação funerária é interpretada como uma nova conceção de purificação, mas também como possível resposta sanitária a epidemias que devastavam comunidades. A difusão foi rápida e alcançou regiões distantes, incluindo a Península Ibérica, onde necrópoles como as de Alpiarça testemunham essa mudança.

Na Pérsia, o culto avéstico do fogo, que mais tarde seria integrado no zoroastrismo, via o fogo como manifestação divina. O fogo não era apenas elemento físico, mas presença sagrada, capaz de purificar e de servir de ponte entre humanos e deuses. A sua centralidade nos rituais religiosos mostra como a ideia de purificação pelo fogo se tornou dominante numa época marcada por crises e transformações.

Na Índia, o culto védico de Agni já estava estabelecido desde cerca de 1500 a.C., mas ganha maior difusão precisamente neste horizonte temporal. Agni, o deus do fogo, era o mensageiro que transportava as oferendas humanas para o plano divino. A cremação era o rito central, porque o fogo libertava a alma e a conduzia ao além. Aqui, o fogo não era visto como destruição, mas como transmutação espiritual, uma passagem necessária para a libertação.

O que une estes fenómenos é a coincidência histórica: em diferentes regiões, culturas distintas adoptaram o fogo como elemento central, seja em práticas funerárias, seja em rituais religiosos. A cultura das urnas, o culto avéstico e o culto védico de Agni são expressões diversas de uma mesma transformação global. O fogo surge como resposta cultural e espiritual a uma crise sistémica que envolveu guerras, fome, mobilidade populacional e epidemias.

Assim, o início da Idade do Ferro não é apenas marcado pela metalurgia e pelas novas formas de organização social, mas também por uma revolução simbólica: o fogo torna‑se o eixo da purificação, da memória e da transcendência. É neste momento que se consolida a rutura entre culturas que preservavam o corpo intacto, como as semitas e egípcias, e culturas indo‑europeias que viam na cremação a forma mais elevada de purificação e libertação espiritual.

No início da Idade do Ferro, entre os séculos XIII e VIII a.C., surgem quase em simultâneo três fenómenos culturais que marcam profundamente a história: a cultura das urnas na Europa Central, o culto avéstico do fogo na Pérsia e o culto védico de Agni na Índia. Esta coincidência temporal mostra que não se tratou de fenómenos isolados, mas de respostas convergentes a uma crise civilizacional que se seguiu ao colapso da Idade do Bronze.

Na Europa Central, a chamada Cultura dos Campos de Urnas introduziu a prática sistemática da cremação. Os mortos eram reduzidos a cinzas e depositados em urnas cerâmicas enterradas em necrópoles, num gesto que rompeu com milénios de tradição de inumação subterrânea. Esta transformação funerária é interpretada como uma nova conceção de purificação, mas também como possível resposta sanitária a epidemias que devastavam comunidades. A difusão foi rápida e alcançou regiões distantes, incluindo a Península Ibérica, onde necrópoles como as de Alpiarça testemunham essa mudança.

Na Pérsia, o culto avéstico do fogo, que mais tarde seria integrado no zoroastrismo, via o fogo como manifestação divina. O fogo não era apenas elemento físico, mas presença sagrada, capaz de purificar e de servir de ponte entre humanos e deuses. A sua centralidade nos rituais religiosos mostra como a ideia de purificação pelo fogo se tornou dominante numa época marcada por crises e transformações.

Na Índia, o culto védico de Agni já estava estabelecido desde cerca de 1500 a.C., mas ganha maior difusão precisamente neste horizonte temporal. Agni, o deus do fogo, era o mensageiro que transportava as oferendas humanas para o plano divino. A cremação era o rito central, porque o fogo libertava a alma e a conduzia ao além. Aqui, o fogo não era visto como destruição, mas como transmutação espiritual, uma passagem necessária para a libertação.

O que une estes fenómenos é a coincidência histórica: em diferentes regiões, culturas distintas adoptaram o fogo como elemento central, seja em práticas funerárias, seja em rituais religiosos. A cultura das urnas, o culto avéstico e o culto védico de Agni são expressões diversas de uma mesma transformação global. O fogo surge como resposta cultural e espiritual a uma crise sistémica que envolveu guerras, fome, mobilidade populacional e epidemias.

Assim, o início da Idade do Ferro não é apenas marcado pela metalurgia e pelas novas formas de organização social, mas também por uma revolução simbólica: o fogo torna‑se o eixo da purificação, da memória e da transcendência. É neste momento que se consolida a rutura entre culturas que preservavam o corpo intacto, como as semitas e egípcias, e culturas indo‑europeias que viam na cremação a forma mais elevada de purificação e libertação espiritual.

No início da Idade do Ferro, o fogo deixou de ser apenas um elemento físico ou um recurso prático: tornou‑se o eixo simbólico de uma nova ordem cultural. A cultura das urnas na Europa Central, o culto avéstico na Pérsia e o culto védico de Agni na Índia são expressões diferentes de uma mesma transformação global. O gesto de reduzir o corpo a cinzas, que podia nascer de uma necessidade sanitária para conter epidemias, foi elevado a ritual religioso e inscrito como fundamento civilizacional.

O que começou como resposta imediata à peste e às crises do fim da Idade do Bronze ganhou legitimidade dupla. Por um lado, funcionava na prática: a cremação impedia a propagação da doença e reforçava a coesão social. Por outro, era interpretada como mandato divino: Apolo exigindo sacrifícios pelo fogo, Agni transportando as almas ao além, Ahura Mazda manifestando‑se na chama sagrada. Essa fusão entre eficácia natural e causalidade simbólica consolidou o poder dos sacerdotes, que se tornaram guardiões do fogo, e transformou o ritual em cultura sistemática.

É neste ponto que se abre a grande rutura entre tradições semitas e indo‑europeias. Para os semitas e egípcios, a integridade corporal era essencial para a vida eterna, e destruir o corpo pelo fogo era uma blasfémia. Para os indo‑europeus, pelo contrário, o fogo era purificação e libertação espiritual, e a cremação tornou‑se norma. Essa divergência não foi apenas religiosa: foi uma cisão civilizacional que coincidiu com o colapso da Idade do Bronze e inaugurou a Idade do Ferro.

A memória desse trauma ficou gravada nos mitos. A Ilíada abre com a peste enviada por Apolo e descreve fogos funerários contínuos, traduzindo em linguagem épica o que pode ter sido uma prática sanitária real. Os Vedas consagram Agni como mensageiro divino, mas por trás da cosmologia está a necessidade de queimar cadáveres para proteger os vivos. O Avesta distingue vários tipos de fogo, mas todos são expressões da mesma energia purificadora que, na prática, servia para conter a doença.

Assim, o fogo surge como ponte entre causalidade simbólica e causalidade natural. O mito dá sentido religioso ao gesto, mas a prática confirma a sua eficácia. É essa lógica linear — necessidade, mito, ritual, cultura, civilização — que os positivistas não souberam ver, e que hoje a arqueogenética e a antropologia simbólica nos permitem reconstruir. O helenismo, com a sua centralidade no fogo e na purificação, é herdeiro direto dessa legitimação dupla. O que começou como resposta desesperada a uma crise sanitária tornou‑se tradição religiosa e fundamento cultural, capaz de atravessar séculos e moldar civilizações inteiras.

No fim da Idade do Bronze, quando as epidemias começaram a ganhar caráter explosivo e o fogo se tornou resposta ritual, abriu‑se uma transformação que não foi apenas sanitária, mas civilizacional. A cremação, que podia nascer da necessidade prática de conter a peste, foi elevada a gesto religioso e inscrita como fundamento cultural. O mito deu sentido ao gesto — Apolo exigindo sacrifícios, Agni transportando as almas, Ahura Mazda manifestando‑se na chama sagrada — mas a prática confirmava a sua eficácia, legitimando o ritual como necessário e sistemático.

É neste ponto que se revela a grande rutura entre tradições semitas e indo‑europeias. Para uns, destruir o corpo era blasfémia, porque negava a ressurreição da carne e a continuidade da vida eterna. Para outros, o fogo era purificação e libertação, e a cremação tornou‑se norma. Essa divergência não foi apenas religiosa: foi uma cisão cultural profunda, que coincidiu com o colapso da Idade do Bronze e inaugurou a Idade do Ferro.

A memória desse trauma ficou gravada nos mitos e epopeias. A Ilíada abre com a peste enviada por Apolo e descreve fogos funerários incessantes, traduzindo em linguagem épica o que pode ter sido uma prática sanitária real. Os Vedas consagram Agni como mensageiro divino, mas por trás da cosmologia está a necessidade de queimar cadáveres para proteger os vivos. O Avesta distingue vários tipos de fogo, mas todos são expressões da mesma energia purificadora que, na prática, servia para conter a doença.

A peste, que até então existia em forma embrionária nos focos endémicos da Índia e do Egito, encontrou no colapso da Idade do Bronze as condições ideais para se transformar em epidemia. A mutação genética que permitiu a transmissão explosiva por pulgas coincidiu com deslocamentos populacionais em massa, guerras prolongadas e a destruição de cidades inteiras. Foi nesse cenário que a doença deixou de ser apenas um flagelo localizado e passou a ser reconhecida como força coletiva, inscrita tanto na memória bíblica como na epopeia homérica.

Os Filisteus, atingidos por tumores e pela invasão de ratos após capturarem a Arca da Aliança, interpretaram a epidemia como castigo divino. Os Aqueus, em Troia, viram na peste enviada por Apolo a cólera dos deuses contra a sua arrogância. Em ambos os casos, o mito serviu de ponte: codificava em linguagem religiosa aquilo que, na realidade, era uma crise sanitária devastadora. O fogo, presente nos relatos como gesto purificador, pode ser lido como resposta prática — a cremação dos cadáveres para impedir a propagação da doença — mas elevado a ritual sagrado, legitimado pela causalidade simbólica.

É neste ponto que se abre a grande rutura cultural. Para os semitas e egípcios, destruir o corpo era blasfémia, porque negava a ressurreição da carne e a continuidade da vida eterna. Para os indo‑europeus, o fogo era libertação e purificação, e a cremação tornou‑se norma. Essa divergência não foi apenas religiosa: foi uma cisão civilizacional que coincidiu com o fim do mundo antigo e inaugurou a Idade do Ferro.

Assim, a peste e o fogo aparecem como dois lados da mesma moeda: a doença como força natural que devastava comunidades, e o fogo como resposta cultural que transformava a prática sanitária em rito religioso. O mito preservou a memória, mas por baixo dele estava a causalidade natural. É essa lógica linear — necessidade prática, mito religioso, ritual sistemático, cultura civilizacional — que explica como uma crise sanitária se tornou fundamento de novas tradições e moldou o destino das sociedades mediterrânicas.

Se aceitarmos que o Egito era um dos focos endémicos da peste bubónica, então qualquer mutação recente da bactéria acabaria inevitavelmente por se manifestar ali, encontrando condições ideais para surtos devastadores. As pragas descritas na Bíblia podem ser entendidas como memória cultural desses episódios, reinterpretados como castigo divino. Mas, por trás da narrativa religiosa, estava a realidade de uma crise sanitária que obrigava a deslocamentos populacionais em massa.

O Êxodo, visto pelos judeus como libertação milagrosa e pelos gregos como expulsão de estrangeiros durante uma peste, traduz o mesmo acontecimento em linguagens diferentes. A mobilidade forçada de milhares de pessoas, acompanhadas por animais e provisões, criou o cenário perfeito para transportar a doença para novas regiões. Assim, o que a tradição bíblica consagrou como mito fundador pode ter sido, na prática, um dos momentos em que a peste deixou de estar confinada ao Egito e começou a circular pelo Mediterrâneo e pelo Levante.

No horizonte do colapso da Idade do Bronze, a peste surge como força invisível que atravessa fronteiras e desestrutura impérios. O Egito, foco endémico, foi o primeiro a sentir os efeitos das mutações recentes da Yersinia pestis, e as pragas bíblicas guardam o eco simbólico dessas crises sanitárias. O que a tradição judaica reinterpretou como castigo divino foi, na realidade, memória cultural de epidemias que obrigaram a deslocamentos populacionais em massa.

O Êxodo, visto pelos hebreus como libertação milagrosa e pelos gregos como expulsão de estrangeiros durante uma peste, traduz o mesmo acontecimento em linguagens diferentes. Mas o resultado histórico foi idêntico: migrações que transportaram a doença para novas regiões do Levante. Pouco tempo depois, os Filisteus são atingidos por tumores e pela invasão de ratos, confirmando que a peste já circulava fora do Egito. A narrativa religiosa preserva o mito, mas a ciência mostra que havia uma causalidade natural por trás: a mobilidade populacional transformou surtos locais em epidemias regionais.

A onda epidémica não parou aí. A Síria, corredor estratégico entre Egito e Mesopotâmia, regista também episódios de peste, até em prisões, onde a densidade e a insalubridade criavam condições ideais para a propagação. Logo a seguir, Hatussa, capital hitita, é atingida por fome e colapsa, contemporânea da destruição de Troia. O que os gregos narraram como guerra heroica foi, na verdade, parte de uma crise sistémica que envolveu deslocamentos, epidemias e conflitos sucessivos.

Assim, mito e história entrelaçam‑se: a peste como cólera divina, o fogo como purificação ritual, o Êxodo como vitória religiosa. Mas por baixo da camada simbólica está a causalidade natural — a doença espalhada pelas migrações, a cremação como resposta sanitária, a fome como consequência de colapso agrícola. É nesse cruzamento que se funda a memória cultural: o mito preserva, a religião interpreta, e a ciência reabre o nexo causal.

No meio das guerras que devastavam CarquemishHatussa e Troia, a peste bubónica irrompeu como força invisível que agravou ainda mais o caos. O colapso da Idade do Bronze não foi apenas resultado de batalhas e deslocamentos populacionais, mas da conjugação de crises múltiplas: fome, epidemias e destruição de cidades. A mobilidade forçada de povos inteiros, empurrados pela guerra e pela escassez, criou as condições ideais para que a peste se espalhasse em ondas sucessivas, transformando surtos locais em epidemias regionais.

Foi essa convergência que gerou a tempestade perfeita: impérios em ruína, cidades incendiadas, populações em fuga e doenças a circular sem controlo. O mito grego traduziu essa experiência em chave épica. A Ilíada preserva a memória da peste como cólera de Apolo e da destruição pelo fogo como destino de Troia. A Odisseia, por sua vez, simboliza o mundo em colapso, onde o regresso ao lar se torna impossível porque o caos se espalhou por todo o Mediterrâneo.

Assim, o que os poemas épicos descrevem como castigo divino ou aventura heroica pode ser lido como memória cultural de uma crise sistémica. A peste, a fome e a guerra entrelaçaram‑se, e o fogo que consumiu cidades inteiras foi ao mesmo tempo gesto militar e purificação sanitária. O mito preserva a linguagem simbólica, mas por baixo dela está a causalidade natural: a tempestade perfeita que encerrou o mundo antigo e abriu caminho para a Idade do Ferro.

No meio da crise da Idade do Bronze, o Mediterrâneo oriental tornou‑se palco de uma transformação sem precedentes. Epidemias, fome e guerras entrelaçaram‑se, criando uma tempestade perfeita que fragilizou impérios e cidades. O Egito registou as pragas como castigo divino, os Filisteus viram tumores e ratos como sinal da ira do Senhor, e os gregos narraram a peste como flechas de Apolo. Em todos os casos, o mito preservou a memória simbólica, mas por baixo dela estava a causalidade natural: a peste bubónica espalhada pelos deslocamentos populacionais.

TroiaHatussa e Carquemish não caíram apenas por batalhas, mas porque os seus exércitos e populações estavam enfraquecidos por epidemias e escassez. O fogo que consumiu cidades inteiras foi ao mesmo tempo gesto militar e ritual de purificação, imposto pela necessidade de conter a doença. Ramsés III, ao descrever os Povos do Mar, deu a única narrativa histórica direta dessa crise, enquanto gregos e hindus a transformaram em epopeias — a Ilíada, a Odisseia, o Mahabharata — símbolos literários de um mundo em colapso.

 

Fontes egípcias: Ramsés III e os Povos do Mar

Sem os registos de Ramsés III, a crise dos Povos do Mar teria ficado apenas como mito, tal como a Atlântida. As inscrições de Medinet Habu (c. 1180–1150 a.C.) descrevem em detalhe as batalhas contra os Povos do Mar, nomeando grupos como SherdenPelesetDenyenTjeker e Weshesh. Ramsés relata combates terrestres e navais e afirma ter repelido a invasão. Este é o único documento histórico direto da crise, transformando o que poderia ser memória oral em história escrita. Graças a Ramsés, sabemos que houve uma coligação de tribos vindas do Egeu e do Mediterrâneo oriental, que se lançaram em movimentos migratórios e militares contra o Egito e outras regiões.

 

Textos bíblicos: pragas e deslocamentos

A Bíblia preserva a memória judaica da crise em chave religiosa. O Êxodo descreve as Dez Pragas, incluindo a sexta — úlceras e tumores — compatível com sintomas da peste bubónica. Em 1 Samuel 5–6, os Filisteus sofrem de tumores e invasão de ratos após capturarem a Arca da Aliança, eco de epidemias reais. Hecateu de Abdera, historiador grego do século IV a.C., oferece uma versão externa: uma peste irrompeu no Egito, atribuída à ira dos deuses, e os estrangeiros foram expulsos. Entre eles, Moisés liderou os hebreus para a Judeia. Assim, o que a Bíblia interpreta como libertação divina pode ser visto, em termos históricos, como deslocamento populacional que contribuiu para a circulação de epidemias.

 

Relatos gregos: Ilíada e Odisseia

Homero cristalizou em poesia épica a memória da crise. Na Ilíada, Apolo envia peste contra os aqueus, simbolizando epidemias que atingiam exércitos. O fogo aparece como gesto purificador, mas também como destruição sistemática de cidades apanhadas pela peste. Na Odisseia, o regresso de Ulisses é marcado por naufrágios, fome, doenças e encontros com povos estranhos — metáforas da instabilidade que se seguiu à guerra. Para os gregos, a Odisseia não é apenas uma história de aventuras: é símbolo literário do caos pós-Troia, eco cultural da tempestade perfeita.

 

Fontes hititas e arqueologia

Correspondência diplomática e textos administrativos de Hatussa mencionam fome e crises agrícolas. Tudália IV promoveu reformas religiosas que podem ter dado razões ideológicas para revoltas. A queda de Hatussa coincide com a destruição de Troia VIIa e Ugarit, mostrando colapso sistémico. Arqueologicamente, muitas cidades apresentam camadas de destruição por fogo e abandono súbito, que podem refletir tanto guerra como medidas de purificação ligadas à peste. TroiaHatussaUgarit e Micenas foram todas atingidas quase em simultâneo, confirmando que não se tratou de episódios isolados, mas de uma crise global.

 

Genética moderna

Estudos paleogenéticos recentes identificaram variantes antigas da Yersinia pestis em restos humanos da Idade do Bronze, mostrando que a peste circulava na Eurásia há mais de 3.000 anos, mesmo antes da forma medieval transmitida por pulgas. Estes dados confirmam que a peste bubónica já existia em forma embrionária e encontrou, no colapso da Idade do Bronze, as condições ideais para se tornar epidémica: mutação biológica, mobilidade populacional e densidade urbana.

 

Síntese histórica

A crise não foi apenas militar ou climática: foi multifatorial.

·                 GuerrasCarquemishTroia, Povos do Mar.

·                 FomeHatussa e outras cidades.

·                 Epidemias: peste bubónica como catalisador invisível.

·                 Migrações: deslocamentos em massa espalharam crises.

O mito deu forma religiosa ao desastre, a literatura cristalizou-o em epopeia, e a arqueologia moderna revela a sua raiz natural. É nesse cruzamento que se encontra a chave: a causalidade simbólica encobre e revela a causalidade natural, e juntas explicam como o caos se transformou em memória cultural e fundamento da Idade do Ferro.

 

 

SUMÁRIO FINAL

Colapso civilizacional:

Entre os séculos XIII e XII a.C., o Mediterrâneo oriental viveu uma das maiores convulsões da sua história: um verdadeiro colapso civilizacionalem que HititasMicenasUgarit e Troia desapareceram quase em simultâneo. A arqueologia mostra cidades destruídas por fogo, palácios abandonados e deslocamentos populacionais em massa. O que parecia uma rede estável de culturas interligadas entrou em colapso em poucas décadas.

Peste embrionária como catalisador invisível:

Estudos paleogenéticos revelam que a bactéria Yersinia pestis já circulava na Eurásia há mais de 3.000 anos, em formas embrionárias anteriores à peste medieval. Esta peste embrionária como catalisador invisível espalhava-se por contacto direto com animais domésticos e carcaças. O colapso agrícola e os celeiros cheios de roedores criaram o ecossistema ideal para que a peste desse o salto evolutivo, tornando-se epidémica. A mobilidade bélica e populacional dos Povos do Mar funcionou como vetor humano, transportando a doença entre regiões.

Tempestade perfeita:

A peste enfraqueceu comunidades já fragilizadas por secas prolongadas e crises agrícolas. Aldeias foram abandonadas, populações migraram em massa e impérios como o Hitita perderam a capacidade de sustentar os seus exércitos. O resultado foi uma tempestade perfeita: guerra, invasões, fome e epidemias atuaram em conjunto, precipitando o fim da Idade do Bronze.

Impacto cultural nos mitos:

Os poemas homéricos guardam o impacto cultural nos mitos. Logo no início da Ilíada, Apolo envia peste contra os aqueus, e os fogos funerários ardem sem cessar. A Odisseia simboliza o caos pós-Troia, marcado por naufrágios, fome e doenças. O mito preserva a memória cultural de epidemias reais, traduzindo-as como castigo divino. Para os Filisteus, tumores e ratos após a captura da Arca da Aliança eram sinais da ira do Senhor. Para os hebreus, as pragas do Egito foram libertação milagrosa; para os gregos, a peste era a cólera de Apolo. Em todos os casos, a causalidade simbólica encobria e revelava a causalidade natural.

Purificação pelo fogo:

A peste foi interpretada como impureza religiosa, e a resposta foi a purificação pelo fogo. Arqueologicamente, vemos camadas de destruição em TroiaHatussaUgarit e Micenas. O fogo não foi apenas gesto militar, mas também medida sanitária. A súbita difusão da cremação, entre os séculos XIII–XII a.C., marca uma rutura cultural: na Europa Central, a Cultura dos Campos de Urnas; na Índia, o culto védico de Agni; na Pérsia, o culto avéstico do fogo. Para indo-europeus, o fogo era libertação espiritual; para semitas e egípcios, destruir o corpo era blasfémia. Essa divergência coincide com o colapso da Idade do Bronze e inaugura a Idade do Ferro.

O que começou como resposta imediata à peste ganhou legitimidade dupla. Por um lado, funcionava na prática: a cremação impedia a propagação da doença. Por outro, era interpretada como mandato divino: Apolo exigindo sacrifícios, Agni transportando as almas, Ahura Mazda manifestando-se na chama sagrada. Essa fusão entre eficácia natural e causalidade simbólica consolidou o poder dos sacerdotes e transformou o ritual em cultura sistemática.

Uma crise espiritual:

Além da peste e da fome, houve uma crise espiritualAkhenaton, no Egito, impôs o culto exclusivo de Aton, provocando deslocamentos e instabilidade. Tudália IV, no império hitita, reformou o panteão, fragilizando a coesão política. O olimpismo grego, ao substituir o politeísmo fragmentado, foi resposta à falência dos deuses locais, mas também sintoma de uma crise de fé que abriu caminho ao monoteísmo.

As pragas do Egito reinterpretadas como memória climática:

As pragas do Egito reinterpretadas como memória climática não são apenas metáforas religiosas de castigo divino: são o eco mítico de alterações ambientais que precederam o colapso da Idade do Bronze. A água transformada em sangue pode corresponder a fenómenos de algas tóxicas; as rãs, moscas e gafanhotos são sinais de desequilíbrio ecológico; as úlceras e tumores refletem sintomas epidémicos; as trevas evocam poeiras atmosféricas de erupções como a do Hekla 3; e a morte dos primogénitos guarda a memória de surtos epidémicos.

Ramsés III como testemunho histórico direto:

Graças às inscrições de Ramsés III como testemunho histórico direto, aos textos bíblicos, às epopeias gregas e às evidências arqueológicas e genéticas, podemos reconstruir este período como uma das primeiras grandes epidemias de peste bubónica da história. O colapso da Idade do Bronze foi a tempestade perfeita: guerras, fome, migrações, epidemias e crise de fé entrelaçados, que redefiniram o Mediterrâneo antigo e abriram caminho para novas culturas e civilizações.

 

Conclusão

Sem Ramsés III, a crise dos Povos do Mar seria lembrada apenas como mito, tal como a Atlântida. Graças às inscrições egípcias, aos textos bíblicos, às epopeias gregas e às evidências arqueológicas e genéticas, podemos hoje reconstruir este período como uma das primeiras grandes epidemias de peste bubónica da história. O colapso da Idade do Bronze foi a tempestade perfeita: guerras, fome, migrações e epidemias entrelaçadas, que redefiniram o Mediterrâneo antigo e abriram caminho para novas culturas e civilizações.

A crise da Idade do Bronze não pode ser entendida como um acontecimento súbito, mas como o resultado de tensões acumuladas que foram apanhadas pela vaga de peste e fome. Carquemish, bastião hitita no Eufrates, já no século XIII a.C. era palco de confrontos militares e diplomáticos, antecipando a instabilidade que depois se espalhou para Hatussa e TroiaTudália IV, um dos últimos grandes reis hititas, tentou reforçar a coesão do império através de reformas religiosas e ideológicas, mas ao transformar a fé em instrumento político acabou por dar razões simbólicas às revoltas que fragilizaram ainda mais o poder hitita.

No EgitoAkhenaton tinha promovido uma revolução religiosa ao impor o culto exclusivo de Aton. Essa reforma provocou deslocamentos populacionais e instabilidade social, enfraquecendo o país e criando precedentes para a propagação de epidemias. A mobilidade forçada de comunidades durante o seu reinado mostra como a religião podia ser motor de crise demográfica e sanitária.

Ao mesmo tempo, os antigos interpretavam a peste como impureza religiosa. A resposta era a purificação pelo fogo: queimar casas, templos, objetos e até cidades inteiras. Arqueologicamente, vemos camadas de destruição por incêndio em TroiaHatussaUgarit e Micenas. O fogo não era apenas resultado de guerra, mas também uma lógica preventiva contra epidemias, imposta por deuses como Apolo. Assim, a destruição sistemática de cidades pode ser entendida como parte de uma estratégia ritual de saúde pública.

A genética moderna confirma que a linhagem antiga da Yersinia pestis já circulava em humanos e animais na Idade do Bronze. Sem as mutações que permitiam transmissão por pulgas de ratos, espalhava-se por contacto direto com animais infectados e pela mobilidade pastoril. A peste foi o catalisador invisível que transformou tensões políticas — CarquemishTudália IV, Akhenaton — em colapso civilizacional. A lógica ritual do fogo era a forma como os antigos tentavam controlar a epidemia, sem compreender a biologia da bactéria.

As pragas do Egito, tal como foram narradas no Êxodo, não são apenas metáforas religiosas de castigo divino: são o eco mítico de alterações climáticas que precederam o colapso da Idade do Bronze. O que os hebreus registaram como intervenção de Deus pode ser lido como memória cultural de secas prolongadas, erupções vulcânicas e oscilações solares que fragilizaram o Nilo e as colheitas, abrindo caminho à fome e à peste.

A água transformada em sangue pode corresponder a fenómenos de algas tóxicas em rios debilitados pela seca; as rãs, moscas e gafanhotos são sinais de desequilíbrio ecológico, multiplicação de pragas agrícolas em tempos de instabilidade climática; as úlceras e tumores refletem sintomas epidémicos, compatíveis com a peste bubónica que circulava em focos endémicos; as trevas evocam poeiras atmosféricas de erupções como a do Hekla 3, que obscureceram o céu e arruinaram colheitas; e a morte dos primogénitos guarda a memória de surtos epidémicos que atingiam seletivamente os mais vulneráveis.

Egito, foco endémico da peste, tornou-se epicentro inicial da crise. Mas a narrativa bíblica transformou essa experiência em mito fundador: o Êxodo como libertação milagrosa, quando na realidade foi deslocamento populacional em massa que espalhou a doença. Pouco depois, os Filisteus sofrem tumores e invasão de ratos; em Hatussa, a fome antecede a queda; em Troia, o fogo consome a cidade. Tudo isto converge numa tempestade perfeita: clima, peste, guerra e migrações entrelaçados.

Assim, as pragas do Egito podem ser vistas como relato mítico das convulsões climáticas que precederam o fim da Idade do Bronze. O mito preserva a linguagem simbólica, mas a ciência mostra que por trás dele estavam secas, erupções e oscilações solares que fragilizaram sociedades. É nesse cruzamento que mito e história se encontram: o colapso não foi apenas militar ou religioso, mas também climático, e as pragas são a memória codificada dessa primeira grande crise ambiental que moldou o Mediterrâneo antigo.