SOLEDADES
OU
HELIOMAQUIA BARROCA
&
Terminado em 1993
Artur Jota Efe
PRÓLOGO
Em vez de ser
apenas do pavão a pena de alma,
e, das armas dos ladrões que vão de cana
atrás da dialéctica, cantar o varapau,
co´a moleta das retóricas lides por caneta,
da mais que conhecida, repetida e ignorada
antropo-metamorfose da cigarra girondina
em canalha guerrilheira, (sempre em farra até às tantas
nas sinistras gargantas das formigas trabalhistas),
eu hei-de lamentar-me do insulto,
luxo-lixo de pocilgas como pérolas de culto,
à beira do ribeiro de águas chilras
que passa como traça em toda a parte onde não for,
plangendo as cordas das guitarras penduradas nos salgueiros
pela dor de não ser nem vil macaco, nem poeta
e sofrer, qual mau gosto de pateta sensitivo,
do vício do desgosto com bom gosto sem estilo!
Cantarei, até que apanhe um cancro na lembrança,
a ilusão dos esquerdinos cavalheiros,
ora andantes à direita sobre cavalos de pau
feitos pedintes de vanguarda, com falinhas pouco mansas
que ressoam como palavras de mau sentido;
já pedantes sem herança, já sem garras varonis;
pendentes como dantes entre bolas de sabão
a encher a paz da albarda quixotesca
com dor-d´alma-de-palha de paixão livresca;
ora amantes dependentes da loucura mordaz!
Mas, já que à míngua de água benta vou morrendo,
à janela duma estética de páginas amarelas,
hei-de levar, em pose atlética afectada,
a cruz de guerra ao calvário literário
nos conselhos mundiais da paz na terra
aos homens e às mulheres de boa e de má vontade!
A verdade do torneio da vaidade que se lixe
já que o que é fixe é a pobre da desgraça
de ser engraçado no viver de borla!
Se o belo é de se ver,
mais feio é não ganhar uma taça qualquer
que a desgraça da nobreza d´alma ganha traça
quando é vã e malguardada,
não sendo amada em todo e em qualquer lugar!
O rei da Dinamarca, que de estilo é já figura, cheira mal,
perdeu reino e frescura,
e, do nascer ao pôr do sol em decadência entra
porque teve a indecência de andar nu na via pública,
ser feio, mal-lavado e... todo classe média rural e tal e qual
a sova encícl(ica n)o( cu )pede(-)a!
Ás mais antigas musas duma rua escura,
com o cândido bolor da mais antiga profissão
do desamar a prazo e a granel,
a técnica do engate insigne e dura,
com meus votos em pé de fim de página
em flor-de-folha-de-papel eu lhes imploro
e a infusa sapiência, nua, crua e sua
e, da arte do dislate, a lata que se baste
para difamar em verso a parte oculta do universo
que anda perdido em paixões pla(s)t(ico-radiof)ónicas
neste lado da onda à média luz
da lua da Noite Nova!
E Vós, Oh poetas da república desgraça
Desta praça dos eternos estudantes da incerteza,
porque tendes nos olhos a tristeza
dos sonhos dos adidos militares?
Se as belas flores à beira deste jardim desencantado
se foram mares adentro refresescar nas caravelas
as espécies de pétalas de amor em extinção
repescam-se no que resta das descobertas da memória!
Delas só resta a história de lendárias presunções,
água lustral de lágrimas saudosas
que quotidianamente e quanta quer
cada criança grande toma sempre a horas certas
para, neste país de insónia, adormecer
e depois acordar em sobressalto
à porta do paraíso de fiscal parcimónia
por que o imposto é roubo que temos que pagar numa cadeia!
Poetas visionários,
porque é que dizeis mal do próprio riso
quais legionários reformados pela santa liberdade
que esta Nação de Barqueiros, vagabundos generosos,
andou a vendilhar e a entornar de balde pelo mundo?
Oh, poetas quimicamente alucinados,
inculta geração de ínclitos nautas,
mitológicos filhos duma pauta sinalética
das notas falsas caídas de bolsos rotos
sobre as malhas do tapete descosido das benesses ideológicas
tecidas pelo império perdido num alcácer-que-há-de-vir !
Poetas da minha terra imaginária,
porque andais de boca aberta quais pardais á toa
na gaiola que restou do terramoto de Lisboa
quando a glória do loureiro, arrancado à taveirada
deste jardim transplantado em areais de sal,
foi, ad etenum e sem proveito próprio,
temperar um caldinho olímpico de letras
com que o atlético e poético Zarolho ganhou folgo
quando deu a volta à Índia em natação
na tentativa vã de fuga ao seu destino ruinoso
para fama dos octetos portugueses
que lavam a remela dos livreiros!
Os mestre-escola navegam neles e metem água
na tristonha ilusão duma grandeza genuína
perdida, como o foi o paraíso, sem razão!
Poetas desta terra dos sonetos perfumados,
porque arranhais as fauces contra as grades
à janela desta rua Áurea
da memória espúria do destino?
Fazer versos "a la façon" DADA
é coisa de imigrança e já vista por aqui
e se o souberes ainda diz-mo coração,
porque é que falam mal de ti?
Ao nascer tu já eras uma ova
ou a galinha do povo que, se dada a ê(/i)smo
mal se lhe vê o peso à columbina
logo fica depena(da) sem que entenda patavina?
Coisa fina e In(a) é pé...da, de, di, do, du...de cu de cabra
e pé... dgj...iz dada...de pé...dantismo gago...
de que Dante não se gaba!
O pior é que esta moda que se tenta agora
nestes anos 70 nem é ser dádá
de orgiástico furor, dos de trazer por casa,
nem é ser gágá com atraso de cem anos
mas pretexto de quem, não sabendo andar na rua,
nem na lua, nem nos algarves aprende a (espi)caçar inglês!
Neste tempo pós-modernos em que a traça
mais do que correr à boa vida
para a grande Lisboa...voa...voa, joaninha,
quem vai ainda inventar musas?
Nem a Terra canta o Mar á luz do cheiro
a velho candeeiro de petróleo
nem nos caiem do ar novos poemas de gazóleo!
Com coisas da Lua Nova já não se abusa
porque os USA têm mais em que pensar
e os poetas, que o não são sem o saberem
têm outras siglas, pocilgas e lugares,
outros temas que não o fazer poemas
como quem defeca a fé à maneira dádá:
no meio da rua e de pernas para o ar
com saudades da lua-cheia!
Ai, épicos poetas de tristonha face
porque cegos ateimais na tão bisonho procura
da alma que se perdeu para sempre
nas ruínas da lembrança
dum império decretado e nunca visto a olho nu
no olho do cu deste país do peixe congelado!
Quando a nau catrineta da saudade,
numa manhã de tédio e frio, se encalhou no Tejo adentro,
com o sebastianismo embalsamado a bordo,
a névoa do ocultismo nascional-fadista
espalhou-se como alpista pela casa portuguesa
aonde fica bem o vinho da pobreza sempre à mesa!
Aqui-del-rei, que andam à caça duma crítica poética
aos fantasmas dos polícias da Secreta!
Aprendei antes a gritar:
Gggg...olo! na própria baliza
contra a equipa da casa da Galiza
e abaixo a liberdade de perder o campeonato
antes da taça de Espanha!
Oh, escravidão da liberta liberdade!
Quem a tiver e sua que se guarde de sair à rua!
Assim tereis segura e de bandeja numa mão
a salvação da boa vida que se inveja
à sombra dum lugar comum numa poltrona
no Palácio da Reforma Agrária Antecipada
de S.Bento à porta!
A vida dos poetas vai difícil
nestes anos de setenta em que já nada é tentação!
Quanto mais se tenta um poema
para a co(r)n(e)a da prima menos rima ela tem!
Não há tema pós-moderno de esquizoide ostentação
que se eleve e se segure com ternura ao cu do céu
e, sem estilo, a má fama, não perdura, de ninguém!
Quem é que não sabe vender uma ideia feita em série
mesmo não tendo veia onde injectar um poema?!
O que faz falta é animar a malta de asas brancas
com as novíssimas técnicas da promoção de vendas:
"Sr. Suavíssimo poeta!...Aprenda a deitar fora
esses punhos de renda e estas penas de pavão
que agora já ninguém Usa!
Corra ao médico da Caixa e deixe por curar
o atávico complexo que lhe encaixa
e, de Ícaro, transforme-se num pícaro
que num golpe em voo de asa se desfeite em saco-plástico
à venda nos melhores supermercados
dos subúrbios da Babilónia
ou na Feira aonde ladram as vaidades!
É o último modelo ao serviço
da sua incontrolável fantasia!
Tem x pés em poder de elevação na hierarquia social
garantia na bolsa e & etc e tal...
Compre já, venda a seguir a alma num leilão
e o seu sucesso inevitável pagará depois!
Além disso está previsto num Decreto-Lei
reservar aos astronautas de carreira o Céu!"
Ai, o que seria dos tão delicados pulmões
dos poetas desta lírica terra
quando a última andorinha esperneasse de medo
e viesse morrer envenenada nas venta(na)s das cidades?
Que seria das belas palavras sublunares
quando a falta de fumo das cómodas cozinhas
dos modernos apartamentos de vidro e de metal
for poluir a intuição poética e electrónica,
milagrosamente preservada duma morte iminente
anunciada e adiada permanentemente
desde a primeira locomotiva a carvão?!
Afinal estes tipos sensitivos de percevejos
são sensíveis à beleza dos zumbidos
e até sabem o que sentem com os beijos!
Só que é difícil perceber a tempo estes poetas!
E, se só agora me confesso cínico poeta
de incrédula dureza de verdade
é porque andei no escuro entendimento, qual Diógenes ingénuo
alumiando o vesgo olhar
dos homídeos que procuro no escuro e claro dia
para neles me mirar sem ter vergonha de me ver!
Mas, cego para mim e para todo o Ser
vou deixar obscuro e por esclarecer este mistério
de nunca desistir de procurar o meu sabor
nem de me meter p´los olhos d´álma
dentro do meu tonel de amargo vinho!
Ninguém mais logrará vendar-me os olhos da razão
com a boa vontade dos que não tendo vis instintos
fingem amar a paz com ódios nas ideias escondidas
como ervas daninhas na minha complacência
de cândido inocente revoltado!
Nas esplanadas dos cafés das ruas da cidade
tantos pregam confusos parafusos de certezas,
compradas em vulgatas de terceira geração
sem que a vera verdade seja tida nem achada,
que já ninguém se sente em paz, e com razão!
Sem encanto na utopia de ir mais longe
do que a evidência imediata inevitável
de tropeçar nas armadilhas da verdade
dos deuses fabricados à mão
á imagem e semelhança da humana mediania
vou deixa-los vencer e tombar como as palavras
no fundo do esquecimento!
Fico quieto, surdo e mudo e sem sequer me defender!
Escondo a minha luz dentro dum poço,
vendo os olhos para ser clarividente
e mais ninguém terá a sorte de se armar em herói
em frente da minha morte!
Eu, feito um cínico pateta e lúcido poeta
bem me lembro de já ter sido agora
um outro e mesmo o próprio Diógenes
em ir apodrecendo
entre as tábuas do tonel do desencanto
bebendo o azedume das vindimas da ira
que me faz delirar embriagado com certezas
de me saber o escravo que ninguém há-de comprar...
nem deixar para revenda!
De cabeça quente e a barriga de vento
a voar-me no céu como balão de pensamento,
com as costas de chumbo a poisar-me no chão
eu canto de contente cada instante
de alegria e tristeza, como toda a gente,
diante das leis da gravidade universal!
Fabricante de bolas de sabão a coberto da inocência
vendo a minha consciência ao asno que ma comeu
num cardo aonde eu ardo de fervor,
a troco de foguetes de ilusões de amor por gaz mortal!
Já não conto com o horror da pompa protocolar
e faço por não ter mérito a féretro nacional
pois não mereço ser cantado em epopeia
na cadeia conceptual com que os jornais
amortalham e pervertem lentamente a humanidade!
Aos poucos perderia a gravidade dos bocejos
a troco de cabrestos de bom-senso
e albardas floreados de anormal normalidade!
Ninguém faz versos a animais felizes!
Ah, que eu tenho nos miolos tantas teias de aranha
e na garganta tantas pragas e preganas
que só não urro e dou coices de revolta
por saber que o meu destino
é chafurdar na merda da matéria universal
sem poder lavar-me da vergonha
de nunca perder a fé na salvação!
Porque o que eu quis foi sempre muito pouco:
que me deixassem ser louco ou até
mesmo um pouco suíno mas, alegre
e não este monte fino de estrumo
de restos de ilusões compradas a peso de ouro
em leilões de fim de século!
(Sempre que há terramotos sociais
os grandes jornais muito oportunos
fazem grandes liquidações com Peste & Sida
na história suicida da cultura ocidental !)
CANÇÃO I
Ai, triste coração, desconsolado e mau!
Mal te apanhas com fogo pelo rabo e ala!...
Lá te pões a galopar, sobre cavalos de pau
feito da carcaça de meus sonhos infantis mal enterrados,
qual relógio enferrujado que trabalha quando calha,
com sentimentos febris!
Pobre de mim coração, amante distraído
quando me apanhas e me trepas à sisífica montanha
com a sifilítica existência às costas...
já mais morte do que vida!
Ai, de ti coração, espostejado pela sorte,
que me entranhas de morte a paz-d´alma de palha
embalsamada de tédio e de agonia!
Ai, triste desengano!
Meus pulmões de bexiga de porco,
conspurcados por canduras de nicotina
não sobem ao ar nem respiram ideias puras
que mereçam ser cantadas!
Ai, de mim coração de anjo enjeitado,
alma penada de criança mal desmamada!
Ai, sombra apavorada de sonâmbulo
pairando extático fantasma da irreal beleza
sobre a mesa à luz monocromática do medo
às chamas deste inferno de desamores e paixão!
Entregue ao tédio das essências dos desenganos diários
enredas-te em fugazes desencantos
que te esperam solitários pelos cantos breves da vida
à entrada dos delongados anos
de todas as noites de insónia e pesadelo
às portas do sonho!
Ai, ai, coração,
se apertar a mão
e ficares p´ra aí
perco-me de ti!
Triste coração,
se me cais ao chão,
frágil como és
partes-te a meus pés
Ai, ai coração,
ficas a sangrar
de pernas p´r´ o ar!
Se confio ou não
fico a navegar
num mar de ilusão!
Ai, que do meu coração a alma se libertasse
dos delírios da razão
e dos olhos me tombasse a gravidade dos desejos
e os discretos ensejos de os sentir à flor da pele!
Porque eu, coração, divago à solta
pelo espaço vago e largo dos meus sonhos a fingir
com que tu te alimentas, estranho coração!
Neste refúgio da lúcida loucura
já nem sei se tanta sabedoria
é dom dos deuses ou, mera fantasia!
Triste coração, que, mal me pulsas os desejos,
já te ris de mim...e dos meus beijos breves!
Se voltar a deitar raízes aonde calha, coração,
ou te falha a corda da mania de existir
ou, pobre de mim, que ao suportar-te a teimosia,
semeio o vento destas horas
por longas noites de pressas e de breves dias de demoras,
até que às fúrias colha a tempestade
e que a esperança se esqueça da saudade
e das vagas ilusões, mais mal que bem, guardadas
nos recônditos recantos da memória,
de súbito, se rasgue a eternidade!
Ai, raiva de viver perdendo a vida
neste gosto de a sofrer em jogos inocentes!
Com medo de a perder entre os enlaces de morte
vou arriscando a sorte nos enganos da luxúria breve e pura
adiando a vida eterna nos desencontros da sorte!
Ai, ânsia de ser enfim, feliz...mesmo em desgosto!...
Ostentação de esbanjar toda alegria
num instante de dor, num recanto de nostalgia,
na exaltação fugaz da indignação...,
num êxtase de amor pela beleza da paixão,
na insensata lucidez por mero orgulho de certeza!
Ai, que em toda a parte eu ressoasse
à luz clara do Ser, nos infinitos céus!
Os véus da face se rasgassem à Verdade
e ressoassem, quais trombetas,
lânguidos soluços de revoltas mal contidas
até que com a idade se acalmassem
as vozes da eternidade
na ânsia da vaidade que alimenta a Vida!
Ai, que se calasse ao som o refrigério
do silêncio do tempo da ilusão perdida!
Da Aurora se apagasse a súbita magia,
da Noite se despisse o seu diáfano luar
e o Dia desbotasse na amplidão azul do céu!
Ai, coração, sequela edípica do Medo,
a quem de areia encheram, à nascença, os negros olhos
para então, não se deixarem muito cedo
encantar na lucidez da transcendência
nem depois, na terceira visão deste mistério
de sublime ilusão de mística indif´rença!
Ai, coração de cego-surdo-mudo,
se não desses ouvidos a tudo o que te digo,
quando saltas contente e distraído
no meu peito de eterno insatisfeito,
ou me bates os compassos semi-longos
da lânguida tristeza em que me enfeito,
revelava-te a certeza do segredo
deste meu ser tão só quanto fingido assim-assim...
tão real quanto prudente e...quão à toa!
Porque tanto se me faz deixar-me ou não levar na tua onda,
numa boa de ladino inconsciente,
como ficar de boca aberta ao ser levado à certa
pela minha acintosa estupidez!
Ai, coração, se te enfartasses de vez
c´o a minha angústia e te eu deixara em paz...
a mascar o catarro das essências que respiro...
teria tido razão ao amassarem-te no barro da ilusão
do reino em que sou desencantado príncipe
do princípio do mundo em que nasci fora de tempo!
Ai, e então...por fim,
nunca mais tivesse de voltar a replantar-me
num canteiro qualquer deste jardim efémero
para ter de bem parecer no cemitério da vida!
Então, teria paz e gosto eterno
para nem me despir do espectro nu do meu etéreo e puro ser
e, sozinho, deitar-me só comigo!
Enfim, amar-te-ia só a ti,
meu coração secreto de Narciso e fantasia
que me fazes entre lágrimas e riso,
solitária e permanente companhia!
Então, tudo em nós seria enfim, sossego e calma!
Mas ,ai de mim, porque eu...
serei desenterrado ainda a todo o tempo
e ficarei de novo e para sempre abandonado
com as raízes da alma ao sol
e o corpo todo ao léu!
CANÇÃO II
E é assim que me vou, estilhaçando
os cornos da razão de encontro aos meus botões
com que me apertam os co(rdi)lhões
às bolsas dos meus instintos
compenetrados em conceitos tão profundos...
tão fundos...tão fu(n)...didos...tão hum...dos que metem dó
que chega a dar-me ganas de me atá-los em nó cego
às tripas dos sonhos...
e atirar-me, como um prego, ao mar !
Penso e repensamos demais, meu coração,
e tanto e a tal ponto escrupulosamente
nesta transparente e séria indimensão
das coisas e dos entes
que, de tanto cogitarmos, coração,
é bem possível que estejamos dementes
e a esta hora já nenhum de nós exista realmente,
até porque não ser (ou ser, quem sabe o quê !?)
deixou de ser questão...
e é já mania de pagar juros de mora
à moda da certeza no par´cer!
Sim, mania de existir pelo delírio sado-manicaista
da indução permanente dos sentidos exaltados;
associações ocasionais de ideias pertinentes,
deduzidos da lembrança por desejos sublimados!
Má sorte de macaco tragicómico;
poeta com manias depressivas
e uma alma delicada encadernada
numa circunferência lógica
de espelhos de cristal estilhaçado!
De tanto maltratar este destino,
que à falta de melhor invento para mim,
ainda acabarei num triste fim
maquinado, sei lá bem por qual mofino inimigo
ou porque amante sem jeito ou distraído!
De andar à deriva, remoinho sem sentido
e, sem sair do mesmo ponto de chegada,
abraço-me de volta ao outro lado do mundo!
Agora coração, cá vou andando,
com saúde de pedra, pendurada
na amargura duma sina de poeta,
arrastando esta velhice prematura,
sorrindo-me dos anos com trejeitos
de garoto pateta que se cuida capaz de trapaçar a morte
metendo-a num bolso roto, de mansinho...de vagar...
co´a doçura do tempo que a alegria rouba à sorte!
Ah, que o dia triunfal do grande espanto
de deixar cair em pranto a raiva toda ao chão
me desse força e fé pela vontade de viver
e explodisse de repente o mundo todo em minha mão!
Ah, coração, que eu nem tivesse tempo
para fumar contigo com grinaldas a mortalha
do meu terno e etéreo amor perfeito
feito de púrpura e cetim!
Ah, coração, convido-te a descer comigo
ao fundo mais profundo que há em mim!
Ah, coração, intimo-te a chegar ao fim do mundo esquecido
num sepulcro de silêncio e conformismo
duma vida em comum como quem pulcro renascia
ingénuo e incerto, sem olhos mas, desperto
bem mais do quanto o permitia
a escuridão do seu destino!
Vem, coração ao jubileu do desatino!
Vem chorar de cor esta plangente melodia
dos fantasmas da memória em agonia!
Vem assistir à permanente indecisão
desta entrega, sem pejo e sem vaidade,
à vontade dos desmandos da razão!
Já liberto dos caprichos da ansiedade
vem, descansar, na paz-d´alma nua e crua,
da fadiga dos desejos, coração!
Depois...que eu não volte a suportar-te
o peso da dureza à fantasia,
nem eu, esta irritante e vã mania
de ter sempre razão antes do tempo da chegada
da longa procissão da nossa prolongada romaria!
Deitamos fogo às paixões e apanhamo-las nas canas da ironia
mal começa a festança da vitória
com que havemos de dar glória
aos nossos sonhos em vão!
E tu, meu coração, serás abandonado
sem engenho nem arte, qual relógio enferrujado
em qualquer parte da lixeira deste mundo-cão!
Não pares coração, antes da hora
da rega das palavras que te põe a andar à nora
porque hei-de ser de novo replantado
na solidão aonde mora uma criança eterna e terna
por se ter recusado a crescer mais
com medo de deixar de ter razão
antes do tempo de morrer!
Mil vezes arrancado da lembrança,
outras tantas enterrado na saudade
do que apenas ao de leve pressenti
à flor dos olhos dos desejos exaltados,
nos beijos mais secretos que escondi de ti,
neste impensável e impossível retrocesso
à pia dum baptismo virginal!
Ai, verdes anos de antanho
do tempo em que mal vivi
Ai, que saudades eu tenho
do que amei quando sofri !
Ai, raiva do que olvidei
na penumbra da lembrança
que ao de leve vislumbrei
à média luz da esperança!
Ai, quem me dera voltar a sofrer-vos
Oh, mais do que remotas ansiedades minhas!
Ah, se eu desejava revistar-vos o sono
num doce abandono ao ruminar da saudade!
Como eu queria reviver num desses dias
em que chorei, com o gozo das saudades solitárias,
os meus primeiros sonhos esquecidos!
Oh, raiva de não poder sentir sequer
o que neles ao de leve pressentia!
Mas, ai de mim que desta indecisão acalentada
pela falsa bonomia da indiferença das ideias
o pouco que vislumbro é fantasia e maldição
quando me dispo inacabado
em frente do reflexo orgulhoso do meu Eu
sem tempo que me chegue para o tanto que haveria a refazer-me
um sentido definido para a equivalência contrária aos meus motivos
nem sequer retomar o rasto aos meus esboços primitivos!
Ai, tristeza que é ter esta nítida incerteza
de que ainda que os voltasse a ressonhar
me encontraria neles tanto e por tão pouco tempo
como no perdido encanto dum louco pressentimento,
feito desenho ingénuo de insegura caligrafia de sorrisos
nos muros da memória antiga dos primeiros voos,
sobre as rimas da aventura da vida!
Depressa me acordaram para o sobressalto
deste salto mortal sobre a evidência
da volta sem regresso ao mundo da fantasia
nua e fria...desfeita em verso
no ar á solta...
envolta no silêncio do universo!
Coração, que ficaste encadernado
num caderno escolar esmaecido,
em que folha do livro da primária me ficou por acabar
a cópia desta alma de poeta que morreu pasmado
antes de crescer morto de tédio e de cansaço!
Algo quebrou o rosto da criança triste
que em vez dum susto esperava por abraços!
Acabrunhado sob o peso de projectos tão aéreos
demonstrou a vacuidade do que existe
circum-navegando os seus incertos sentimentos!
Inventando a Beleza Proibida,
qual dom intemporal que só valesse a pena dar,
joguei-a num destino diletante,
no inebriante embotamento dos sentidos
e no lúcido abuso dos desvios permitidos
á calma sensatez da idade da razão!
Ai, coração que ainda assim
o meu sorriso amargo é complacente
ao ver que o sem sentido disto tudo,
é tentar, sendo cego, surdo e mudo,
equilibrar a sorte com a falta de juízo,
fingindo iludir a morte sem ganhar sequer
a mera consolação de uma qualquer aparência de sorriso!
Ai, coração que até ficava satisfeito
se eu tivera o gosto e o jeito
de me enfeitar com as grinaldas da memória
das primeiras sensações originais,
ao sabor de correntes de marés e vendavais,
sem pressa de encontrar no absurdo disto tudo
motivos para gritar:
Ai, quanto é belo voar à toa
nos braços dum amor de malmequer
e de veludo!
Que bom que é a bela vida
navegando no mar dum qualquer beijo
ao luar!
Porém, depois de ter assim amado tanto o meu passado,
mesmo quando ali eu fui tão mal tratado,
continuo a amar-te a ti Oh, vida! A vós Oh, ilusões dos dias
nos ternos desencontros das demoras
na violência das despedidas
no aconchego do luar, na meia sombra
ou à torreira das cantigas em agoato
ou ao sol-posto na lembrança à cor esquiva das espigas
loiras trança de criança, olhos verdes nunca vistos
imparável carrossel das mágoas do devir!
CANÇÃO III
Coração, deixa-me em paz!
Não me arranques o cabelo com escrúpulos estéticos
nem me irrites os espectros duma ética qualquer,
razão técnica dos meros sentimentos!
Fiz tudo o que, de belo, bem parecia
para ser um bom rapaz e mesmo assim...
nunca fui capaz de ser enfim, mais feliz do que o nome!
Ai, de mim coração, que foi que eu fiz de errado
ao ter nascido prematuro e inacabado e com fome
de saber, que tanto vale a pena vir-me embora,
à tona d´água da luxúria dos desejos,
como ir-me por ai afora, atrás da sombra dos sonhos
de malmequer da Bela-Adormecida,
em qualquer margem do mar...
em qualquer esplanada do lado de cá da vida!
Ai, coração, pára de me bater no peito!
Tem mais jeito e deixa-me em sossego
pois, se gritei de dor ninguém me ouviu chorar,
porque motivo não havia de ficar
de costas para mim ou de pernas para o ar!
Ai, coração, que mal posso eu fazer
que não me tenha feito já sofrer!
Se eu sempre quis ficar igual a toda a gente
e não atino naquilo que é preciso para ficar contente,
com tino, acomodado e pensando ser feliz...
agora também, já não tenho tempo, nem razão
para desistir desta indiferença
do quanto se me faz ser assim ou então...
nem sequer saber se sei sorrir!
Ai, de mim coração, que devia ter mais fé
no ritmo natural, dos teus impulsos
feridos e já mais que referidos
pelos meus sentimentos exaltados!
Ai, de mim, coração !
Deixa-me !...Pára e fica a léguas dos bocejos!...
Mata-te e mata-me de tréguas !
Apenas quero paz nos meus desejos
e...quando morrer que seja devagar,...
bem ao de leve e sem sequer saber que parto
desta vida descontente!
Apenas tenho medo de me vir cedo de mais
deste degredo em que não sei viver
no logar que não pedi para ficar!
Temo mais agonizar de estupidez
do que ser apanhado nas rasteiras,
do meu próprio, sensato e cínico intimismo!
Coração, não devia arredar pé
desta mórbida espera inesperada pela Amante Negra
que nos levasse ás festas do solene plenilúnio
em noite triunfal de entrada póstuma
pelo jogo glória a sério enfrente!
Oh, derradeira, única e verídica ventura!
Ao rasgarem-se os véus desta inocência por demais violada
no fundo da lembrança, na amplidão dos céus,
na intangível dimensão dum outro além-lunar,
tudo é tranquilidade eterna e infinita!
As portas do paraíso de brinquedo, que procuro
na face inversa do mundo
da lembrança dos meus sonhos de criança,
abrir-se-ão, sem medo a este escuro
da revoada em alas dos arcanjos
de guarda eterna ao império azul do céu,
à rósea inocência recolhida na verdura
do mistério duma vida oculta na ilusão!
Tombarão chuvas de estrelas
sobre belas estátuas de cristal
de incorpórea alegoria inominata!
E das cinzas da memória hão-de saltar
os esfíngicos felinos
guardiões da solidão do estar além...
muito aquém do bem perto de mim...
e muito mais para bem lá deste meu mal!
À beira do abismo da ilusória identidade
cairemos na verdade do buraco negro, escuro
do seguro destino do ser e do não ser!
Da Ansiedade da verdade
de todas as vaidades nos havemos de achar nus
e, afundando-nos na fonte da sublime inconsciência,
lavaremos a inocência dos pecados uterinos
no sangue menstrual da original certeza,
na mãe d´água virginal do tudo-e-nada
com que germina a videira das idades!
Então, coração hás-de sofrer as dores de parto
do meu esquecimento derradeiro
desta sempre incompleta divindade
e nasceremos de novo do lodo da existência!
Ainda que me tivesse encontrado
e na palma da mão e abalasse de novo
para um outro lado,
qual ave de tardia arribação ou em serôdia descoberta,
não chegava a desvendar-te essa magia certa
ai, meu pequeno e caprichoso coração!
Ai, coração, se receio que te partas
sem poder esquecer-te os brincos das cerejas
pendurados nos meus olhos de criança sorridente,
de açafate de cerejas na mão,
então, é porque eu nunca quis
deixar de desejar de ser feliz assim!
Ai, coração quando enfim parares de me sofrer
e de mim reste a certeza de me ser e te não ser
na ilusão das contingências que nos fazem ressentir
a subtil ilusão da essência dos instantes,
dissoluta na poeira tão plural e infinita
dos espaços vazios, então....eu serei eu
e serei nada em todo O Ser !...
O, Único !...O, Divino !
Até lá, coração, ai...como anseio
por esse dia nessa hora ou neste instante
em que reviva noutro seio-espaço-tempo
neste corpo semeado contra o vento da existência
sem que esteja como, agora dividido e consciente do delírio
desta fuga sempre em frente, aos arrecuos,
feitos de amuos e euforias decadentes
com os quais invento a liberdade!
Vontade de me ser de qualquer jeito
sou cavaleiro errante pela selva do enfeite do discurso!
Rasando a incoerência bem pensante,
deito a mão às palavras mastigadas com desdém
e, com raiva e com amor, cuspo-as ao ar!
Escravos subjectivos, naturais e egoístas
do receio de murchar, breve botão de rosa,
antes do tempo efémero,
de raízes expostas vertiginosa luz
da inconstância dos sonhos
viveremos na ilusão deste sentir
original de ser um eu particular,
convergência abissal pelos desígnios da razão!
E, assim, não tendo nunca renascido
duma vez por todas,
jamais inteiramente morreremos
e aos poucos nos iremos dissipando
nos momentos de eternidade com que o Ser
nos faz seres à flor da pele destes efémeros desejos...
sublimes beijos de perfeitas formas,
até que ao Eu das coisas se dissolva a identidade
dos nós de finidade sobre o Ser de que emergiu!
Ah, que se ao menos este sol que se me esconde
por trás do nevoeiro das manhãs de tédio
me não perseguisses a sombra...partiria de vez,...
sei lá bem para onde !
O meu sonho seria levantar o acédio ao mapa mundi
povoado em demasia pelos sonhos e, depois, evaporar-me
ou, então, que podesse renascer ainda mais amargo
noutro lado qualquer do largo mar do tédio
sempre que, ao ser replantado, me cortassem as raízes
e deixarem cão sem dono
ao abandono das directrizes do medo!
Oh, soubesse contentar-me com felizes saudades
e recomeçar a vida noutro lado
onde ninguém soubesse o meu passado todo
e quieto me deixasse, no meu fundo
do lodo da memória solitária do que sou agora!
Nesta existência sonolenta
das mesmas cores de outrora
as mágoas quotidianas são as mesmas
das horas de outros dias
e nesta espera incerta do seguro desespero
jamais virei a ser alguma coisa séria
de agarrado que estou às nesgas de miséria
da esperança de algum dia vir a ser enfim, feliz !
Eu...que nem sei se acreditei
ou creio ainda neste engano
em que eu quis transformar a minha vida,
fingindo este solene cepticismo!...
Ao cabo e ao resto eu nem desejo nada!
Nada vezes nada dos sonhos que me penetram
como agulha de morfina!
Mas, ai!...Que o que eu quero é mesmo nada...
ou, pelo menos, nada que eu não posso dispensar!
Ou melhor ainda, é tão inacessível o que anseio
que preço algum real da vida vale o regateio
de matar-me, ao lutar pela vitória da razão!
O mesmo que é dizer que, nesta palma da mão
a morte sufocante, com que existo em corpo e alma,
resiste ao sacrifício sobre-humano
dum instante de lucidez
o que até é de muito pouca graça
mas, é com ela que eu vivo e sou assim assaz...
a modos que mais louco que infeliz !
CANÇÃO IV
Oh, esta tão solene estupidez
que cada vez à vida mais se agarra
não poder compra-la ou dá-la de seguida
que então, é que instrutivo assim seria
o suplício de Tântalo ao contrário
a que indiferentes nos deitamos a afogar no mar da vida
sem dela poder desistir,
sem sentir arrepios de dor d´alma!
E, por cá me vou assim aguentando na labuta
pela meu quotidiano quinhão de vida eterna
alternando com o riso o choro e o sorriso
e, sobretudo, amando-a distraído a esta mulher da vida
das esquinas dos séculos!
Eis, que é chegada a hora do contraste crucial!
Já cadáver no esquife nupcial, meu corpo-rei vai nu
e tu, meu coração, de poros bem abertos
ás correntes de ar de incertos pensamentos
sobre o quanto se me dá na real-gana,
fica, qual sacana e com cara de pau
feito às crises de tensão
ou ataques de suor horripilantes
e convulsões de choro ou com vontade súbita de cantar,
exposto à expiação dos meus secretos vícios
pela virtude desta pública paixão pela verdade!
Fustigado fugitivo das insónias sem recurso
dos desencontros diários com a minha amante negra,
beladona irrecusável, imprevista e pontual
de todas as minhas noites de euforia e medo
é pela escuridão adentro que eu penetro nela!
Ei-la, que desponta do deserto da lembrança
de entre os dedos de areio do degredo sem esp´rança,
e é vê-la que se instalada rubra e nua,
descarnada de súbita alegria,
na intimidade vazia e descarada
dos cantos cardeais do meu quarto de insónias!
Ela, a sempre bela e feia...
A Angustia-Mãe chegou!
Só me resta bebê-la sem ter sede
já que pequei com ela para toda a eternidade!
Amo-a tanto que nem sei o que me impede
de com solene pompa a receber
com uma bebedeira de ansiolíticos
e um urro de foguetes nos artelhos paralíticos
e um pontapé no cu da consciência
assim ela o tivera de brancura imaculado!
Violá-la-ia até ás tantas com punhetas e bocejos
não fora ela frígida a meus beijos
e, Brígida imperfurada, não me humilhasse de dor!
Fútil Prostituta dos meus sonhos mais sombrios
amar-te-ia até ás fezes com ardor e lágrimas,
até sangrar de amor em verso branco,
até morrer de dor e de prazer
no reverso do deleite duma noite, no outro lado da cidade
acordada em sobressalto
sobre os abismos da minha falsa identidade!
Oh, tu Amante Negra à média luz do lúcido delírio
das minhas odisseias pelos mares do pesadelo
vem ouvir-me com desvelo bocejar com parcimónia
e chorar ás gargalhadas sobre o lírio duma lânguida saudade!
Mulher assustada e fugidia,
tão surda à melodia dos bocejos,
vem lamber-me no peito o ansiedade dos meus beijos,
espremer à mocidade o acne em que me sujo de desejos impossíveis,
tão cedo desflorados quão depressa são remorso!
Oh, Sombra solitária, Oh, Sonho leve
vem-te embalar no conto cor de rosa
da minha vida amorosa nos cantos da nostalgia!
Ai, Beleza carnal e obrigatória
prometida nos orgásticos suplícios sifilíticos
das fantasmáticas orgias da razão,
vem-te envelhecer comigo em versos grandiosos
no tédio dos desejos e bocejos odiosos
com a incontida revolta contra as penas pegajosas da paixão!
Como porcos mal amados nós seremos bem tratados
até à saciedade dos instintos anormais
e seremos tarados, esfolados
e tratados como anormais e depois...
comidos pela vida conformada de discretas armadilhas,
na paz de consciência da pública moral!
Se não morrermos de pasmo com espasmos repetidos
ganharemos bolor e cândidas nos sentidos
senão coisa pior e de raízes ao sol
viveremos o desfrute dum amor irregular!
Ai, cabra da vaidade! Ai...ai puta de vida,
amiga dos meus olhos onde miras o que é teu,
vem brindar ao meu triunfo de macaco e de poeta
e vai-te! Mas, deixa a porta aberta
à minha fé "naife" na virgindade perdida
em séculos perversos entre versos de pureza!
Ai, minha amada de estupor
companheira e amante neste meu degredo tão fingido
dança comigo o canto encantatório
com que se olvida o purgatório da verdade!
Ai, Mater dolorosa do deleite em frenesim!
Já de inicio foi a mais que à luz da lua me pariste
e me deixas-te só com esta alma que me existe,
neste corpo ao léu de rosto feio e triste
que perdeu os olhos e a razão
que insiste no receio do desgosto da paixão
e no gosto da indiferença primitiva
com que a qualquer preço se entregava
a ti...ao gozo de existir...e ao amor !
Oh, ao Amor qualquer em qualquer lado e a qualquer hora!
A ti Oh, mulher da minha vida
que me violavas, qual criança sonhadora
com receio de crescer,
quando te descuidavas de ser a namorada
da infância que não tirava os olhos das estrelas
à espera do condão dum arco-íris
nas auroras sublunares!
Ai, resmas de verdura em que se arruma a ramaria
da rima uma a uma que rumina este rumor
em que se arrima a romãzeira em romaria
da rama a esmo em que me lanço na planura
do remanço do rio que derrama no deserto a minha dor
de remar contra a maré sem rumo certo!
Sonhos que eu era! Oh, ilusões que eu tinha
réstias de sol...laivos de lua,
ideias lindas soltas pela rua...
risos no ar, à toa como bolas de sabão!
Ai, rio Douro, ai, ao léu
nadando quem me lá dera!
A culpa tivera eu!
Morto lá não me viera!
Sonhei-me cavaleiro andante e monge
dum convento encastelado e altaneiro
de onde se aviste ao longe a serrania
entre estevas de poesia espreguiçando
a sesta do guerreiro solitário
e em paz d´alma nua e calma transpirando
entre as pernas o cio deste estio
no sacrário da lembrança enamorando
das etéreas doçuras comungasse
num êxtase sagrado e inocente!
Cantigas ao vento,
espigas no chão,
esquinas do tempo,
suspiros de v´rão !
E assim se divertia esta criança distraída
divagando à sorte pela vida fora
até à hora de tanto te encontrar
a ti Oh, Morte...
Amante Negra que num longo sobressalto,
incauto me prendeste aos descuidos da vida!
Mas, ainda um dia hei-de encontrar em ti o meu amor,
no verso e no reverso destas pétalas
de flor do malmequer e hei-de casar contigo
quando em mim fores tu e eu, minha Mulher!
Mulher de sonho, mulher de insónia e aurora de mulher!
Nesse dia o mundo explodirá de dor de parto
e eu hei-de ficar farto de não ser original
na vontade de o fazer aparecer qual nova lei
no espectáculo sublime da igualdade
seremos tu, meu corpo de mulher e eu
a tua alma humana eterna e gémea!
E então, mulher eterna, deixarás de ser escrava
da aparência que te fez ter de parecer mulher
feita semelhante à imagem ausente
e motável como o tempo
dos desejos angustiados do ser homem!
CANÇAÕ V
Oh, vozes incisivas dessas forças inefáveis,
primitivas e translúcidas visões,
rumores misteriosos da memória,
reminiscências de fundo do ruído da existência
da explosão dos arquétipos do Amor!
Murmúrio ou eco e réplica doutro sino,
nostalgia deste lado da surdina do mundo
desde o dia em que nasceu, no fundo fim do mar,
o Deus-Menino...
O Sol Maior!
Oh, Grande Sol, diacrónico nos tons
das cores das melopeias ébrias e épicas,
nunca assaz venerado pelas insolações dos poetas!
Quem não sabe o teu nome passa fome de alegrias
e, se dança a mandar chuva, apanha calmarias
A uva é ácida
como maná da ira que, caindo das nuvens negras,
as vergas enferruja das industrias da moral
para glória do teu poder
fóssil, podre e poluente e triunfal!
Do teu brilho de vitória resta apenas na memória
a mortalha rasgada no veludo verde da Amazónia em agonia!
Porém, o teu encanto é nostalgia
do viço da luz mística da vida
ao sol dum v´rão eterno à beira-mar
nas costas do leão mediterrânico!
Entretanto cantarei o desencanto em si bemol
do Sol Ocidental envolto num lençol sintético,
em eclipse parcial de gaz sulfídrico e carbónico!
Que descansem em paz as suas réstias de luar
entre cinzas radiantes de ruína
dum belo apocalipse que, de súbito, seduz
quem sonhou incendiar o mundo em gasolina!
Oh, sol menor com saudades doutros mares do sul!
Acordado já tarde deste sono extemporâneo,
ficaste mal disposto até ao v´rão!
Geriático maníaco com crises de tensão
e (porque não?) da mera sugestão duma impotência sexual!
Maquilhaste o rosto em pó de giz
e expectorastes a cinza da manhã,
invisível a um palmo à frente do nariz!
Oh, sol da divina solidão,
irmão bastardo de Zeus,
filho duma anã-branca decadente e envelhecida,
enamorado da réstia de lua assolapada sobre o mar,
tu és a cor do derradeiro pôr-do-sol
entre as ruas das ruínas ensombradas das cidades
perdidas na memória duma história tão banal?
És tu a luz mortiça deste breve fim de dia
contente com coisa pouca, sempre triste, aborrecido,
fugindo da brisa fria, braço-dado com o medo
da tímida donzela que violaste de cabeça
atrás duma janela deste tempo da apagada e vil tristura,
perdido atrás dela, sem esperança
sem mérito nem candura,
com falta de beleza e sem juízo?
Consomes-te em migalhas de brancura dúbia
qual deleite derramado na pulquérrima planura
pela ovelha ranhosa da sagrada família!
Ciclópicos enredos os dedos das medusas
serpenteiam no céu e já Penélope
com eles se perdeu tecendo o véu
da verónica mortalha de Milão!
E o que será da fábula do lobo ribeirinho
que ficou com tanta gula do cordeiro místico
que faltou à rábula da missa soleníssima
em que as garras do milhafre transmontano
rasgaram o rosto envergonhado ao deus solar!
Depois o fim da tarde se ensombrou de medo
e no degredo dos cumes do Marão a raiva trovejou
e soltou-se o fio ao gume da navalha,
o grito ao frio, e o vento ao temporal!
Então, um nevão pintou a serra de branco
e luz voltou a ser por algum tempo mais o azul do céu!
Ai, sol ocidental já em crepúsculo divino,
solfejado num hino ao fogo posto à palha
pela língua da serpente do Doutor que prometeu
amar a humana condição com tal pureza da verdade
que de tanto a prometer também morreu!
Ai, triste sol doente por olímpica saudade!
Temendo, com a força da paixão, incendiar o mundo,
logo ao Ser do universo ordenaste
que das fúrias se apagasse o lume ao fogo do castigo
e ficas-te, fala-só nas brumas da memória,
creto-heleno-euro-orbi-moribundo,
estátua martelada dum Apolo ró-có-có
nos frontões rui-vermi-fungíveros da história
do solar da senhora dos passos
do tempo perdido a procurá-los
atrás da tua sombra indecidida!
Sol Barroco torturado de sublime compaixão!
Capitel salomónico de folhas acantonadas
nos cantos retorcidos num encanto sensual
em cantatas trocistas de prata em cascata
e casquinha dourada!
"Bel-canto del´arte", carrilhão de carnaval
à média luz aberta à melodia da expressão
do delírio em parte incerta
de rimas em ecos, de versos e sensações,
reversos de ideias...
e associações contra natura imprevisíveis!
E quando renasceste duma fénix prematura
tu tiveste a loucura de brilhar antes do tempo
e foste condenado nas fogueiras duma santa inquisição
por catarino masdeísmo hiper-judaico-cristão!
A espuma negra que se escorre duma vida efémera
em borbotões de seiva morta nas nervuras dos ciprestes
pelas enxurradas, junto às portadas dos jardins celestes!
Giró-flé...giró-fla pró pé do vale de lágrimas
das lamúrias uivantes de pragas e ladainhas!
giró-flá...para lá das fontainhas do Douro
passarás...passarás mas alguns sonhos deixarás
no giró-flé-flé-flé-flá...desta cerúlea letargia!
E gira tudo em redor da ventania
que vá de folia...que vá de mania...
pois desde a lua nova aqui ninguém bulia
atrás da nova moda literária!
Ai, esta luz mortiça, pó de pirilampo
que nos cai, figo lampo, sobre a sopa de pau-santo
como línguas de fogo no rabo
do gato esfolado pela sogra!
Não é raio que se parta nem é praga de luar
mas, é a névoa parva que ficou exposta
na porta da sacristia
da romaria da Senhora das Dores de Parto
com saudades das desgraças dum outro tempo
numa 6ª feira santa anticoncepcional!
Tanta poalha de gentalha enriquecida a esmo,
fastidiosa e fósforescentemente fogo-fátuo,
enfaticamente fétida por ter sempre o mesmo gosto,
gula piromaníaca de polícroma luxúria
das pérolas ao porco de cultura
com que se introduz no cu a inchundia da galinha!
Ah, mas há que falar também das revoltas da primavera
depois do vendaval de colorido regional duma canção
que por onde passou deixou desfolhadas as palavras
nas rosas de papel e sobre os cravos de aço!
E os cristais de marfim sintético
espalhados em patético desconcerto
são o que resta nos salões de inverno feitos capelas imperfeitas
em castelos de areia semeada pelo vento da vaidade popular!
Elevam-se inseguros, estrepando-se nos muros
num ar que se lhes deu, queixumes de ciúme,
raivas rubras ao lume, pragas que Deus nos concedeu!
Suspiros de espíritos insólitos que se fritam-se na sertã
e tombam cartas do baralho de batota
no sofá do fraudolento consultório
onde o ócio mitológico ficou qual letra morta
a aguardar o diagnóstico de bócio mesentérico
do tédio filosófico diário!
Com gestos certos de incertezas puritanas
e sorrisos de alho porro à flor dos lábios curvos
lá se apalpam as mamas ás tricanas catarinas
e as bonecas indiscretas ficam manas patarecas
de pernas abertas, a gritar, histéricas:
__ A tua, qual é ó meu!...
Filho da puta que te comeu a alma!...
A vaca sagrada que te pariu!...
O corno de oiro que te injectou
heroína no juízo com agulhas de insulina!
Sol e neve derramados ao de leve
pelos passos atolados nas valetas!
Inscrevem-se na lama da lembrança
rastos de folhas de violetas secas,
saudades murchas de fim de v´rão!
Distante do Mar Cáspio desagua o cuspo
das litanias inventadas pelo padre Inácio
para tratar a caspa das viúvas
que se constipam quando só tomam banho
na pia baptismal da água benta!
Empoleiradas as aves agoirentas esvoaçam
quais espectros tão baléticos em pontas de alcatruzes
nos topos bélicos dos mastros das antenas de TV
a rirem-se da triste e má figura
que se vê por todo o lado da cidade!
Nos épicos quadrados da vaidade
com os cantos embrulhados em papel de vil jornal
escondem-se os abraços enleados,
gatos mortos farpeados no arame da vindima!
Puxa-se-lhes o rabo e zás !...
Assim se trama este desmame da memória
ao longo da cartilha maternal
com que se vacina a diarreia d´alma:
"eles cruzaram continentes sem saberem astrofísica
e enfiaram baionetas no cu ao léu dos incréus!
Hoje descobrem planetas
mas, nas tetas da vaquinha de Belém e não no céu!"
De novo como dantes alguém há-de levar os justos mais incómodos
a sentar-se na vala mais comum do desencanto e do consenso
e os demónios são proletas, a grelhar em lume brando
numa noite qualquer longa de quando
esvoaçarem pelas praças da desgraça
os anjinhos da mamã, na brisa da manhã das asas brancas!
A grande tempestade das monções de paz de Fernão Minto
há-de atear o fogo extinto à China desde o muro da vergonha
até à grande muralha das lamentações!
Honra e glória às forças vivas das nações
que o são na constrição expiativa dos mortais,
paquidérmicamente banais mas,...divinas!
Ah, este Sol em pó, que já se compra em lata
misturado com azul de tornassol
em qualquer supermercado, é maravilha barata de electrónica
paga por conta e por esmola a prestações
ao deus do consomismo mais comum!
Este Sol não é luar nem mês de Agosto
nem desgosto à luz do dia,
nem é sequer o Inferno a seu contento
mas, uma lição de economia cósmica
para cursos de invernos rigorosos!
Sonhos afinal de aquém-e-de-além-mar
atirados areia para os olhos duma pura desrazão!
Este luar não é também nem clareira nem clarão
nem alvorada de clarim nem clarinete ou caldeirão!
Nem é chuva de malvas nem é queda de cu nelas lavado,
não é água de rosa que se cheire
nem caliça suja que penetre nas arcadas da memória
como cheiro a naftalina e sabonete!
Não é alma de sapato de defunto que se espere
nem sequer ande às avessas da candeia que esmoreça
à lareira aonde o caldo de nabiça amargo e verde se cozinha
para tratar a soledade,
doença profissional dos filhos da cobiça!
Enquanto se requentam os segredos duma aldeia típica
andam as bruxas e os duendes de empurrão
contra a pia baptismal!
E as beatas volteiam como baratas
em redor da lamparina da trinidade santíssima
desde que subiu o preço do barril ao litro do petróleo!
E em uníssono carpindo longas lendas lengalengas
languidas e lentas...loucas litanias
plangendo e esconjurando vão este destino...
porque até ao lavar dos cestos há uvas por vindimar
e depois do Advento há tédio e tempo quanto baste
para virar o andor
que a procissão ainda agora vai no adro
porque a salva-Rainha tem angina ao peito!
Por razões de saúde e de respeito foi levada de balão
e deixou-nos, por fazer, as bôlas do Natal!
CANÇÃO VI
Ai, este sol divino que desceu aos quintos dos Infernos
e ao terceira dia explode o caos dos instestinos
e ressuscita em harmonia com a longa noite de inverno
em agonia glacial!
Ressacou da recidiva etílica,
sentou-se à mesa do Café Nicola a beber Coca-Cola
com tremoços e pevides e ficou amarelo
quando apanhou um estalo da direita a paterna
por ter passado a noite na taberna
em esquerdices de filho pródigo!
E, de água vai em vinho vem, consagra missa a Samartinho
como tratamento genuíno da anemia d´alma
e para a salvação da Maria-João dos olhos verdes,
que se riem tanto deles, expulsou os vendilhões
da casa da moeda Lusitana a golpes de martelo
e num golpe de foice e génio deu o salto imortal
sobre a própria loucura deixando à escura a nossa história
ás voltas com a penitencia milenar
de ter de o adorar às sextas feiras
fazendo abstinência de guisado de serpente
depois da hora do jantar!
Num domingo de apertos com políticos
pendurou-se entre ladrões duma farmácia de serviço
e lançou à urbe esta sentença orbicular
de drogar o populacho com o próprio sangue!
É por isso que há quem ande de semana
disfarçado de cigana a ler a sina
com a cruz na testa e corra de festa em festa
a pregar o sermão da montanha russa
(estranha mania de enfiar a carapuça a quem a usa já
com o conto do vigário que roubou o pão à criancinha
num chão que já deu uvas...e agora,
nem que a chamem, um figo verde lhes dará!)
Ai este Sol sem viço...ai, o brilho que é mortiço
pairando como pardal esvoaçando enevoado
ou revoada de bucólico reverso do rosário
plantados no quintal do padre eterno!
Condenado a ir parar à boca da panela onde fumegam
as ternuras das caldas afagadas pelas madres
escondem os cochichos das comadres
no sacrário da capela da rainha santa!
À janela, o vizinho da donzela, de binóculos litúrgicos
viu vir-se embora com a espiga na garganta
o triste herói desta semana santa
apanhado com a boca fora da botija
e deixou cair da mão o riso ao chão
quando ouviu as gargalhadas que, ao partirem rua fora,
se atiraram à cara do consenso comum!
Este sol desencantado
que definha atrás das dunas
desta praia ocidental da pobretana
é a nau quatrineta que encalhou no porto da fuzeta
entre um futuro de treta a céu aberto
e o velho fausto oriental a persegui-lo
como o diabo acordado em sobressalto
de três noites de exausto pesadelo
a restaurar a loja que já foi um templo essénico!
Cravo ruivo na lapela da farpela domingueira
anda a espalhar mau cheiro...e o boato
de que abriu a caça ao pato de bico retorcido
e faz-lhe tomas e piretes e caretas
e outras pragas do Egipto
e abre-lhe a braguilha rota e descosida
e apalpa-lhe a impotência ejeculante
com a voz sonante dos metais em brasa
e atirou-se arrastando a asa à filha da luxúria dos mortais
e teria enrabado o refilante trovão da liberdade de expressão
se não tivesse havido greve no Inferno
quando caiu do muro abaixo de Berlim!
As vestais foram violadas
e vestiram-se de monjas outra vez
e, fartas de o não serem se tornaram enfermeiras
quando os padres que perderam vocação
subiram a doutores da mula russa!
As bacante não couberam no convento
mesmo tendo por patrono Santo-António e São-João
e andam perdidas a horas mortas e tardias
como bruxas sufragistas
e outras musas e artistas de profissão!
Lúbricos amantes de antigos e novos mitos
à chama vacilante do receio dos desejos
por ali ficaram a beber até ás tantas
da seiva amarga e doce da miséria humana
com que os deuses, quando perdem a razão,
se tornam car(ne em vinha-d´)alhos
e se metem em sarilhos e atalhos rituais
em fálicas procissões de gloriosa ostentação
com fome de poder e de outras formas de demência
(como falta de coragem no saber viver e envelhecer!)
Com todas as demoras à sombra do sol poente
talhou-se o leite ás tetas da Virgem-Mãe
e os sexos ao relento constiparam-se
e faltou a luz à potência fecundante
do farol das divinas e essénicas essências!
Depois de tanto ter sacrificado a Natureza
no altar da história universal da divinal metamorfose
ao espírito suicida e assassino
das crises de crescimento da razão
eis que se empalidece o Sol nos olhos dos convivas
do necrófilo banquete da memória
exumada por questão comum de delito de opinião!
Só lhes resta mordiscar gemidos
desgrenhados dos cabelos do instintos indomados
pelo fogo que não arde
nem se vê na escuridão!
Com medo de enlouquecer de tanto se consumir à toa
apagou-se na raiva do próprio ser!
Foi assim que, numa longa e triste noite de eclipse sublunar,
se queimou o sem saber nem desejar
nos círios dos cilícios da razão de estado
à volta da questão da quadratura
do Círculo Máximo de mínimos!
Encenador de mimos de poder e de paixão
restaurou as ruínas dos Impérios Milenares
com os suplícios da fé pura de gordura
de cristãos e outros acéticos cretinos
atirados à fera ditadura da prática da razão!
No local de qualquer parte de qualquer instante
onde os beijos de paz sejam sinceros
florescem como milagres da manhã,
lágrimas de orvalho de saudosa indignação!
Porém, ali ao lado, como pragas de bocejos
arrotados à mesa do cordeiro,
os delírios tomam forma de mistérios rastejantes
e pela noite dentro da cidade eterna
aberta ao pesadelo duma dúvida metódica
as almas se depenam dos despojos
duma efémera vitória, sobre o medo secular!
Acampadas no vale dos que já moram cá
desde o tempo que outrora não doía
nem fazia a comichão que tinham lá
vegetam com saudades das cebolas do Egipto
os que todas as passas do Algarve já comeram
pelo fundo do saco roto
da caridade envergonhada
com a mão aberta a quem lhes leia a signa
de apátridas a expensas das migalhas do orçamento
que da miséria resta das ruínas
de que a memória dos impérios se alimenta!
Depois destes dias de sol gemebundo
viciado nos desenganos do luar
em neurótica agonia de violada e velha tonta
A Virgem Mãe deixou-se vir em letargia
como as outras sobre os olmos descarnados
onde fica pendurado ao relento
o sonolento olhar da lassidão!
Ali foram desaguar à beira dos abismos
dos ribeiros da tristeza porca e suja
os crocodilos de lágrimas sagradas
choradas neste Outono sobre folhas orvalhadas
de crisântemos de morte em Flor de Loto
atiradas ao rio Nilo-Congo da saudade
dos heróis da guerra suja de aquém-terra!
Repicaram-se os brônzeos sinos noite dentro
de monte em vale, de serra em serra,
delongando e proclamando aos quatro ventos
raios e coriscos,
ceifando vendavais ao cancioneiro nacional!
Foi um delírio dançado em colectivo desafio
e ao romper da alva demorada e fria
veio a calma no silêncio da dor d´alma
acarinhada no regaço destes doces desenganos
comprados ao desbarato num leilão
de democrático feitio e ostentação!
Assim se fica em paz de consciência
descuidada no cardo que outro burro já comeu
na cova aonde iria uma católica ilusão
que nem se vem, nem chega a ir-se duma vez
entre as réstias que já é
das fatí(mi)dicas dúvidas de fé!
Os lampejos de vergonha numa esperança sem razão
guardados estão no sacristia
com a fé na identidade dos contrários
da caridade em campos de fora de piação das almas!
No alto dos campanários hibernam as ideias
trespassados como galos de Barcelos.
Toda a meia-noite cantam missa, garbosos e belos
até ficarem sem pio nem pinga de sangue
no fio do pavio do rito suevo
da imperial lembrança mal lembrada!
Ao romper da alva desnorteada
foram terminar a consoada
no prato da cabidela de Sé Velha
onde se cossam os colhões do padre Inácio
que mal os vê bem lhes cobiça o cu
e logo ali lhes canta a miçanga do galo
e reza pela pele e pela alma dos sapatos dele!
Entre as grades do cemitério das idades delirantes
foi a enterrar de novo este mistério
dos peixinhos de vidro em à água benta
que aparecem partidos nos charcos
onde os meninos tiveram o decoro
de lavar a pilinha como Pilatos na pia baptismal
antes de erguerem nos braços a heroína nacional
ao som da tabuada decorada lés-vez-dez
com as desventuras no meio do Sacro-Império!
Ficaram recordadas na capela
das alminhas depenadas das folhas esquecidas do saltério
com santinhos de pau carunchoso
atrás das grades do medo, à espera do entrudo!
Ai, este sol apocalíptico vestido de veludo,
esta lua violada pelas naves do inferno
com ciúmes dos anéis sem diamantes, de Saturno!
Este sol despeitado e displicentemente mudo
desde que ficou destronado do centro do Mundo
pisou as flores do mal como anátema divino
e amassou o trigo roxo no suor do seu focinho
talhado à imagem, semelhança do divino,
nestas rimas inversas de pé coxinho e de quebranto!
Ai, este sol sentado à porta do Inferno informativo
como estrela esquecida de cinema mudo
empoleirou-se em árvores metálicas à espera
do Inverno televisivo do nosso contentamento
(porque o inferno rima sempre com o inverno!)
Pasmado de tédio e de fervor serôdio
benzeu-se com a esquerda,
babou-se ás costas da direita
e deixou cair a placa dentária ao chão
e finalmente apagou-se o fogo ao céu
e a paz eterna e cinzenta
tombou na natureza morta de saudade
pelo tempo da fé perdida ao colo da mezinha
com a esperança nos beijos por caridade
pelos séculos da seca secular...
própria dos filhos da mãe pútrida!
Viva Portugal! Abaixo o Sacro Império!
Abençoado país do orgulho da Saudadosa Soledade!
(Tretas e montes de retórico entulho!)
Oh, Sole mio...!
CANTO VII
Hiperbórico nume, falocrata omnipotente,
fera assada em lume brando desde a Era glaciar,
Santo e seguro no altar do lar,
dupla imagem semelhante à mesma ideia
do amor do pai perdido no paraíso em fuga dos infernos
no tempo da grande guerra do poder dos afonsinos
no império dos sentidos e no reino da paixão!
Deus menino seminu, recém-nascido
acorrentado ás grades da moral e da razão!
Arcanjo Lucifer, com o orgulho ofendido,
Heli-El-Elim o Bom, o Belo e o Maior,
és tu o príncipe encantado e pequenino,
mimado e amuado mas, caído em desgraça,
caíste do trono abaixo e te roubaram ao amor!
Farol alexandrino, ficaste com vertigens nas pirâmides do Egipto
e iluminastes o mito aos deuses parri-fratri et homi-suicidáros
subterrados na torre da confusão dos terramotos linguísticos!
Zigurastes por milénios dos caldeus
na Torre de Babel onde Israel morreu
quando Amon-Rá se fez judeu
e, forte como touro, tourear-te em Creta e Meca
e fundido em ouro a raiva de Moisés
que te queimou os pés-de-lei na Sarça Ardente,
quiseste-te ariano velho-duro-pé-de-cabra
enquanto corneavas, Lucifer, qual capicórneo moiro-touro,
o pai dos homens todos da Anatólia aos balcões!
Disco solar, Astro-Rei triangular,
depois de escravizares os deuses pela trompa de Falópio
plagiaste-te a cabana lacustre do pai Noé
à velha Europa
dos ciclópicos ligures e, novo rico
dos alvores coloniais da História,
edificaste templo nas olímpicos montanhas
e atrelaste um carro desportivo ao cavalo que é de Tróia
e, Zeus mulherengo ou apolíneo paneleiro
inventaste na cama o ócio da Metanóia
da cerâmica de estilo que deu fama a Adão e Eva!
Solteirão inveteraro na amplidão do céu
Consomeste, cara de cú ao leu,
Em convulsivos oragamos termonucleares
Com que os terráquios fazem os ciclos solares.
A este Prometeste o fogo e o paraíso
e deste-lhe a desgraça no Inverno
e, por herança o inferno do pecado original
desta humana condição!
Quando neva na serra é já inverno
e dá-se a queda dos impérios aos romanos
e brilha o Sol do Inferno sobre a Terra!
Tonitruante Toro do martelo de Vulcano
andaste ufano a colher visco na Floresta Negra!
Zoroástrico fogacho, fogo fátuo breve e belo,
Senhor das ninfas regras, amainaste as tempestades
e da fúria duma mística lunar
foste a prima das causas para a força maior
sobre a terra e sobre o mar
e ficaste a meditar tal-qualmente
no Tao do pau de Zen ou a ferver de paixão
nas contradições castiças dos Hindus!
Depois, tentaste ainda a Jesus que não quis ser Júlio César
e em nome dos impostos falhaste o sinal da cruz
e acabaste triangulado espírito tributário
excêntrico ao sistema planetário do futuro!
Símbolo das letras da Suma Teologia
arquitectaste o medo da desordem
e acabaste Édipo-Rei-Sol da Nação moderna
porque em terra dos cegos que te olharam de frente
quem tem um olho é rei e faz-se gente!
Ainda és a mesma imagem da hodierna orfandade
nos delírios de Império, na queda das monarquias
e hoje em dia em vez incenso
fumas o ópio do povo!
Soma e Sumo da Sibéria da apagada e vil tristeza
desta tragédia que é comédia e não tem brilho
nem expressão de demográfica beleza
és motor de reacção a combustível proletário
quando tramaste o fim à história milenar
pela má consciência dos acertos da razão de estado
e gáudio do Primeiro Grande Chefe!
Premissa dos silogismos pequeninos
tamanhos poderes deste o pai nosso
que é nosso o colosso que de rodes
é o filho...do Patrão !
Hoje, és o Sol Moderno que em democrático saber
vibra de energia e poder num Instituto Politécnico
e vens-te sobre nós em cobre desfiado
por dentro da cidade!
Tu és um sol à mão útil e prático,
pó eléctrico enlatado nos telhados!
Da tua antiga a fé resta o enfeite popular
das típicas aldeias aonde morre nas candeias
o azeite da saudade pré-industrial
num vaso de manjerico, flor de estufa
salteada ao luar, fogueira de São-João!
Oh, diáfano mistério da luz e da ilusão!
Oh, leveza insustentável dos apertos da matéria!
Oh, ciúme delirante , fome e fé de todo o amor
desespero sem nome, miséria de te esperar
de mal amadas almas nas águas calmas do mar!
Oh, Sol! és Tu o Alfa e o Ómega
no instantâneo fotográfico do mesmo verbo Ser
conjugado na voz do lume que fumega vate e nume
no Logos das palavras do saber
em poeiras de nadas de infinito reviver
espalhado pelos fogos da paixão de existir
pelo preço da ilusão do espaço imaginado
para além do escuro
lá onde o impossível é pensável,
aí onde obscuro se esclarece
e tudo é nunca mais e o que virá a acontecer!
Depois de te inventar no azul do céu
fiquei zunindo à toa à tua volta,
perdi esta batata quente que comia e corri atrás da mão
que te pedia e intrigado, tu fugias-me também!
Olhei-te!...Eras um disco de metal de vil latão
tremeluzindo amarelo no sorriso, nu e só no azul do céu,
comboio de lata de brinquedo por comprar!
Ai, sol de inverno que de virgem não morreu
e não desceu ao meu inferno
e ao terceiro dia renasceu na minha origem
por despeito dos meus sonhos megalómanos
à imagem e semelhança do meu pai
que me partiu a cara de criança feita natureza
da puta que madrasta me pariu à força da razão
e na pura desrazão duma prática geral
marcou-me o funeral e eu...nem a sombra Te pisei, Oh Sol!
Assim eu aprendi que não valia mais a pena
olhar-te na penumbra paternal
e, descobrindo-te tão nu e roto no umbigo
vi-me nascido da semente dum Diabo Jesuíta
e apanhei esta doença da dor d´alma
que, com cio, se me põe de corpo mole
e triste ao luar e, por isso, fui expulso do que existe ao sol
e vim dar ao paraíso duma vida em ré bemol
e acabei por me encontrar com esta falta de juízo!
Se acreditasse em fantasias de mulheres a dias
e em meias melodias por cantar
nos cantos das capelas sem encanto de tabernas
onde as pernas dos perversos penitentes
se esfregam e entrelaçam como obscenos versos
já me tinha embebedado com o sangue vivo
dum místico carneiro e, com cara de pau, feito bispo Lusitano
e, por engano, ao almoço comeria
o corpo mole e moço da inocência
ou a alma duma criança por nascer!
É que um dia eu fui embriagado pelo mosto
duma mística esperança numa fé sem rosto
com que são baptizados os que da sorte são enteados
e embarquei à toa na arca do Noé da Catrineta
como proto-templário português e cavaleiro andante
condenado à morte atrás do taça da desgraça
do Graal de Portugal feito a granel
na mira de encontrar alguma graça
ao que de borla ninguém dá na CEE
nesta migalha ocidental da Geografia
que apenas inventou de divertido
o suplício quesiológico das rimas
dum zarolho ilustre que morreu sem primas
e, como eu, se perdeu nas caravelas dos outros!
E tudo pelo bem desta Nação e dos que dão
o cu e três vinténs por um naco de pimenta
num negócio de tabaco ou de canela!
E assim é que eu me encontro no homérico percurso
de sem mérito algum andar à vela no discurso
dum delírio silábico de Caríbides!
Procurando não escapar ao sol e ao ócio
do triângulo equinócio deste nosso amor ao mar
imitação do que serão as Caraíbas
todos perdem tecido ósseo por debaixo das Bermudas!
Meadas de idade, surdos-mudos e miúdas
tudo e todos lá se esquecem do mistério!...
Lá se tecem, cá se perdem
nas malhas do que foram neste império (s)e(s)colar!
Revoltando a areia das praias desencantadas
aperta-se-me a garganta numa crise de grande mal e asma
e espetam-se os nervos em mastros como improviso
desta vocação de navegante e de fantasma
de judeu errante em terras já conhecidas
mas que, de estranhas nunca assaz lembradas,
todos temem nunca vir a saber
que foram vistos a serem fodidos e fecundados
pelo espectro impotente do gigante Adamastor!
Só sabem fazer amor como escolares efebos,
dos que andam pelas valetas a beber
a loucura das punhetas coloridas
e acabam na pontas das baionetas
dos sebosos mancebos que já foram...à merda na Guerra!
CANÇÃO VIII
Ai, Galileu "galilei" filho da Lei de Prometeu
que de luneta em punho apunhalaste
a cega fé dos olhos poderosos
e libertaste o Sol da escravidão do mosaico celeste
aonde jusué se esqueceu dele
pasmado e acorrentado aos caprichos
da terráquea ilusão
e fizeste cair sobre os exércitos Suínos
de todas as Guerras Santas que hão-de vir
retalhos de bigodes de luar postiços;
Mandaste cair a chuva miudinha de planetas e cometas
e puseste o sol no seu lugar e tudo
e deixaste o mundo mudo
e a ver-se-lhe o cu, nu por um canudo fundo !
Este sol signo do poder inconsciente
da força da paixão da humanidade
louvado e escarnecido pela idade
do pensamento inconstante
e com mais olhos do que tripas na razão
há muito que se põe nu e indigente
nas praias dum azul e claro céu
de equações dif´renciais como as estrelas
com medo deste mundo em risco de extinção!
Ai, que a bela ideia etérea em verso
dum Sol que incendiasse o Universo de matéria
e de paixão não chega a iluminar caminho algum
nem mesmo o dos abismos do delírio místico
onde caiu a maldição da inveja
de quem teme ser picado pela víbora e deseja
adormecer enrolado nas raízes da mandrágora!
Loucos de fome e lucidez sem nome
passarão a eternidade a devora-se a cauda!
E no azul do céu que a custo respiramos
nasce um Sol moribundo de beleza especial
e aperta-se o cerco aos limites da certeza
grito de Cisne, belo de morrer
em estertores fanáticos, fantásticos de ardor
da dor térmica e nuclear
em sacrifício ao próprio Ser de renascida Phenix!
Já da grande ilusão da descoberta Cósmica
apenas resta a deserção monumental
em memória do cinismo do silêncio da história
circunscrita na ponta da caneta inconsolável!
Já a esp´rança de encontrar a luz do pleno dia
se dissipa na cauda dum cometa exp´rimental!
Mas, ai! Oh, decrépita grandeza!
Partilhamos enfim da glória efémera
de nos sabermos filhos ilegítimos do Sol
que fez ferver de vida a Terra Mãe!
Ai, Mito Solar cujo fulgor nos cega ainda os olhos!
Não te adoramos nas pirâmides mas,
e massacramos-te os mistérios nos anéis dum ciclotrão!
Descendentes dum deus menor e moribundo,
súbditos galáticos do Império Azul-celeste,
testamenteiros imprudentes deste mundo em extinção
dissipamos o ouro mitológico da Aurora
que, desde a hora em que a potência divinal
se anelou no firmamento
nunca mais o humano pensamento descansou em paz!
E no céu mora o Pai-Nosso que de zelo se devora
qual Phénix parideira, branca anã,
estrela da manhã de luz simbólica
com que o destino da memória se alimenta
de retórica energia na retorta de Platão!
Pai-nosso que no céu estrelejais!
Já tarde descobrimos a miséria que nos deste
e, mais cedo ainda havemos de morrer!
Ai, de mim filho bastardo deste Deus solar
criado semelhante à nossa imagem lunar
de caixeiros ambulantes sem bagagem
com que teimamos, sempre em vão, tentar a Deus
vendendo a alma ao diabo e Deus aos homens
acabamos por entregar, de mão beijada, a alma a Deus
e atirarmos com o diabo para as bocas deste mundo!
Oh, grande Roda Solar do desatino
da escuridão das noites de pesadelo,
por ti sou eu a luz que em ti nasceu
e deus serei quando em triunfo te enterrar
e encandear o mundo em teus segredos!
E de tanto semear a paz na Terra
colherei o amor volúvel da paixão
e a cor que me encandeia a face triste
do reverso embrionário da Memória alheia
ruída de desculpas nesta fé que não desiste
de acreditar nas maravilhas da História!
Tê-lo-ia inventado a este Deus Solar
da cósmica e infinita solidão do Ser
ou eu mesmo me faria estrela de cinema
ou General numa noite de solene bebedeira
se não tivesse sido convertido à brincadeira
da gaia Ciência do fazer comédia a sério!
E ao acordar do pesadelo do mistério da vida
achei-a mais comprida e divertida
e breve a agonia uraliana
dos ídolos deitados à lixeira
por séculos e séculos de vil progresso e brincadeira de cultura!
Porém, quem havia de acreditar ainda
que os Deuses Imortais possam errar
e distraídos, ter caído no pecado
de fazer-se de parvos e falar como os Humanos?
Sim, com os homúnculos terríveis
que amassaram por engano à média luz solar
do barro mais cigano que havia na Palestina!
As cabeças de faiança feitas à semelhança
da imagem da mioleira divina
ficaram mais duras
que a ditadura das Constituições Nacionais!
Mas, tudo se entenderia entre deidades senis
fartas da monotonia eterna!
Sim, qual seria o sempre jovem deus do céu,
Yavé hierático e burguês, aristocrático Jove
ou o Zeus Bé-bé Playboy, herói do olímpico alpinismo,
que desceria das brancas montanhas da neve eterna
em viagem de negócios por Espanha
sem se transformar em ventoinha
cada vez que a mesquinha humanidade
se lembrasse de vender-lhe a alma
por um pouco de pó do paraíso de heroina e cocaína ?!
Tenho cá para mim que os deuses, se falaram,
há muito que emudeceram, por orgulho arrependidos.!
(É blasfémia pensar pela cabeça da Primeira Premissa
que de tanto ter ido à missa
tenha perdido o juízo !)
Porém, o eco fóssil deste guiso que deixaram
nas sublimes palavras penduradas
nos salgueiros que dão flor de bem e mal dizer
não retine mais, na ferrugem dos ouvidos dos mortais
do que a súbita vertigem salutar
da hora de ter fome e ter onde ir jantar!
CANÇÃO IX
Ai, se ao menos este sol que tenho à mão
numa edição profana de Cosmologia
de todas as manhãs de tédio
à espera das previsões para o Verão,
não fosse um guarda-sol de praia roto
abandonado sem remédio
pela névoa sombria, desistiria de me perseguir,
como cão vadio com cio e cheio de frio,
a sombra da raiz quadrada que arranquei dos cabelos
partiria de vez de barco à vela à janela
do comboio fantasma dos meus pesadelos !
Ai, se eu pudesse evaporar-me o corpo mole
de raízes expostas ao Sol
deste lado do Mapa Mundi
povoado em demasia pelos sonhos,
mergulhava no fundo deste mar de fantasia
e renascia mais amargo ainda
sempre que sou replantado
num canteiro do jardim do cemitério da vida !
Ai, se ao menos eu pudesse um dia
voltar ao mesmo lado do começo
do fio emaranhado do destino...sem me recordar
do meu vago passado...do meu nome
e esquecido ficasse calmo em qualquer lado...
e fosse fácil morrer sozinho !
Ai de mim, que não me livro nunca de mim próprio
nem dos versos de rimas e trocadilhos,
nem dos impreciso e cadilhos divertidos!
Mesmo sendo a toda hora abandonado
nesta minha apagada e vil tristura
da candura diária e repetida
dos mesmos e pequenos vãos triunfos,
nos erros de sempre...(ai, banais e monstruosos !)
continuo com esta falta de ar e sem vontade de morrer
nem desistir desta existência incolor
vivida por amor quotidiano à mesma hora,
igual aos mesmos gestos de outros dias
sem jamais chegar a conseguir vencer-me ao desafio
que a mim mesmo lanço ao dissolver-me
nas vagas de pequenos nadas em que anseio tudo !
E fica o tempo a meio de caminho
nas esperas inúteis por amor
que não faça murchar a flor no vaso
nem dê aso à dor de vir a acabar sozinho !
Ai, eu que me atormento neste engano sério
já nem sei se creio em mim ou se deliro !
Neste fingimento de solene cepticismo
ora pasmo de tédio à tona caprichosa dos sentidos
ora morro afogado na corrente da razão
infiltrada como veneno
no meu pequeno e pobre coração
e no fim, lá bem no fundo
nem sequer penso nada sobre mim !
Sim, nada e mesmo nada que não possa dispensar
Ou melhor, é tão inacessível o que anseio
e é tão denso e imponderável o que penso,
tão normal e sublime o que eu desejo
que afinal, nem valerá a pena pensar mais
nesta fútil ousadia da procura
dum sentido qualquer que justifique estas aventuras
de lutar por um lugar no carrossel da morte
apenas pelo efémero prazer
de passar um dos três dias desta vida à luz do Sol !
Ai, que esta inconsciência de jogar aos dados
para andar, por amor, a enamorar-se da má vida
e acabar , por conv´niência, casado com o próprio umbigo
para sobreviver à força da razão
não é um mar de rosas nem sequer uma miragem
do suplício de Tântalo em filmagem
a que indiferentes nos deitamos a afogar !
E assim, é que vamos nos deixando ir
dando pulos de contentes como bolas de sabão,
cantando e rindo, faça sol...haja luar,
alternando o choro com o beijo,
dependendo do pão quotidiano como da existência
prostituindo-nos à esquina
dos mais breves desenganos
e, por amor à vida, leves nos deixamos
enganar pelo bom-senso da vaidade !
CANÇÃO X
Ai, de mim coração que não te entendo
o batalhar enferrujado do teu tic...tac
nem te sinto o rico-tico...tic-tic do teu riso
neste mundo circular em torno da girândola
dum pensamento profundo e impreciso !
Ah, se eu gostava de saber se vivo !
Porém, se é que eu nasci não me recordo
e todo me remordo e não me palpo
e sinto muito mal, mas...ai de mim
nem eu próprio sei se minto
quando persisto no vago sentimento
insidioso e fora do comum
de nunca ter sido visto nem achado em lado algum !
Pressinto não saber sequer se existo
ou se me invento a sorte quando me desminto
para contento do meu medo de pasmar !
E à força de insucessos sucessivos
com que imagino o ludíbrio diário
de trocar os passos ao passar do tempo
da morte dos instante repetidos
até faço de conta que é a sério
que assim mesmo me angustio
sempre que me perco neste sem sentido
de teimar saber porque procuro
ainda agora, sempre e apesar de tudo
a voz balbuciada no escuro
das coisas que comando atrás do muro
da existência fugidia dos instantes !
Ai, quem me livrasse de secar de tédio
quando fico para aqui a remoer
culpas sem remédio, mágoas sem doer
desculpas, raivas, iras e vinganças
pragas sem esperança cada vez
que à míngua de aguarrás, zás,
me regam as raízes com urina !
E então o meu sorriso fica liso e amarelo
e o meu canto de espanto só é belo em sendo feio !
Já nem sei se me lamento para meu contentamento
ou se tenho nostalgia das cebolas do Egipto
de onde fugiu a minha infância
atrás do tempo perdido !
E tudo isto dito e feito em brincadeira séria
com trocadilhos de miséria e sentimento
e assim fico enrimado e ensarilhado de mau gosto
e perco o rosto, a graça e o respeito
e fico a falar muito e só resmungo
e o meu intuito de acabar com este mundo
faz-me ficar a chorar ás gargalhadas,
sem dizer nada de jeito !
Ai, este maldito anseio de me ser e de sentir
nisto tudo ao mesmo tempo
e ter receio de morrer a contratempo
e não ousar por tédio ser ridículo
em sendo mal recebido, quando nu, em público !
Porque um dia, se calhar a ter coragem
de me deixar desfolhar pela aragem das rimas
e ficar sem parra e pouca uva ao Sol e à chuva,
hão-de-se rir de mim !
Ou, pior ainda, haverá quem tenha dó
deste pobre fala-só, raivoso e mal amado,
vaidoso da verdade antes do tempo,
descarado e mesquinho amante da beleza sem idade !
Mas,...se eu próprio não me importo
de estar ainda aqui de pé
ou andar morto de tédio e cansaço
que se riam! Ou então, nem se lembrem mais de mim !
Quem me achar louco e me chamar poeta
por ser pouco isto que eu valho em ser pateta
é sinal de que não têm quem lhe sirva por espelho
onde se mirem no que todos temos sido
ao ser cretinos que se ignoram
no medo de falhar e ser comidos pela sorte
e mais tarde ou mais cedo
nós todos nos havemos de espalhar bem ao comprido
nos tapetes da morte aonde em desespero se manobram
os freios frágeis da loucura !
E é por isso que eu tenho estes ataques
de lúcida estupidez e de mania
de me atirar de pernas para o ar com altivez!
Transplantado-me do chão do meu cómodo sossego
cá me deixo ficar no doce enlevo, de raízes ao Sol !
Sequioso de beber a vida num só trago
me embriago a gozar a solidão
na terna companhia amarga e doce
da eterna complacência da ilusão !
Ao dar assim, comigo triste e só
tenho dó da criança que não quis crescer em mim
e fico-me a acenar impaciente como lenço de saudade
ao doer-me a Nostalgia
de sentir os meus desejos inocentes !
E a pouco e pouco dou comigo em louco
encontrando-me na idade dos bocejos
cansado de querer-me me existir
e com vontade de dormir...dormir
e ir-me embora para sempre!
Então...todo enrolo-me
à doce melancolia
dos sonhos acordados e divago em fantasia
e acabo nu e só, deitado-me comigo !
Porém, pobre de mim, ainda que me atirasse,
com fúria de cão esfomeado, à vida e vagueasse
por esse mundo fora feito outra gente
pela frente a memória me trairia
dando-me a farejar a Nostalgia
das horas gastas pelo rasto umbilical
das primícias das origens uterinas !
Ai, ai de mim...alecrim aos molhos
por causa de eu ser assim é que os meus olhos
se embaciam de tristura na verdura
dum Horizonte impreciso e distante !
Ai, ai de mim...alecrim doirado
que nasci no fim dum tempo vindimado
pelo canto amargo da ira e...do diabo
ou dum raio divino que o derreta!
Gostando de viver junto ao encanto do inferno
temo queimar-me nele e a ele eu me condeno
neste diário purgatório que abjecto
quando deixo que me expulsem
do paraíso de inverno
do meu desconcertado conformismo !
Por vezes já me julgo edificante
qual castelo de espuma construído pelo ar !
Porém, das dimensões dos cantos cardeais
que me sustentam em pé
sorvo o sabor da porcelana velha
quando, mal acordado, bebo o meu café
com cara de sacana inconvincente !
E é há hora da sesta que mais suo
as gotas do martírio em pensamento
pingando como lágrimas de efémero cristal
do meu firmamento em súbito delírio
quando o sol se me põe do outro lado do céu
à medida em que o tempo perdido a imaginá-lo
se me vai pintando em verso o véu do rosto distraído
no reverso do cenário que anuncia o fim do mundo !
Ah, porque é que eu não caí ao poço do delírio
da vaidade de buscar-me um ser maior que o meu?
Porque não vai ao fundo do vazio
o vão orgulho deste desatino estético
que é nunca decidir enfim ser eu ?
Mas, ai de mim que o desvario não tem fim!
nesta sorte desgraçada ou mal nascida
hei-de ser fumo sem fogo, alma de fumo,
fogo fátuo e dor de alma de palha!
A minha maior pena é não ser cinza
nem já fumo nem sequer feito de nada
e ter a alma pequena em demasia
para que não canse suportar-lhe a companhia
da suprema e insensata ambição
de sempre desejar e ter razão !
Ai, de mim que sou tudo sendo nada
e ainda que o próprio nome me olvidasse
por toda a parte a fome de viver os meus desejos
me haveria de encontrar no desajeito e nos ensejos
com que me hei-de arrastar a sombra da lembrança
que uma onda sinuosa de trejeitos e bocejos
tracejam e projectam sobre mim !
Ai, de mim que do alto da ambição de me encontrar
levito sobre a ponta dos meus olhos
sempre abertos à beira dos abismos da ilusão!
E é fugindo dos escolhos da existência
que a mim mesmo me atiro e afogo em complacência
num pântano de ideias movediças !
Ai, de mim que jamais me vou ao fundo
nem imundo me venho à superfície
de mim nem de ninguém!
E todo me remordo e não me palpo.
Se me toco, nem me perco, nem me agarro
quer à flor da pele dos meus sentidos exaustos
quer na intimidade
dos incautos segredos tenebrosos!
Que eu nem nos nós dos dedos sinto a dor de corno
nem nos cotovelos o adorno da razão !
De alto a baixo me disfarço a imprecisão
e logo do avesso me desfaço em rimas !
Desde a planta dos pés de malmequer quebrados
à raiz dos cabelos ouriçados de matrona e manjerona arrependida
coço o desassossego mas não ando bem
nem me mando andar !
Falo e calo por calhar e fico mudo
para tudo o que me faça ouvir o canto das sereias
num mar aonde nem sequer serei as saudades
do pranto das basleias que se vão comigo
ao fundo da extinção do mundo antigo !
Ai, ai, ai de mim que não me iludo enfim
nem me vou ao ar, nem largo tudo ao chão
e deixo-me pasmado em qualquer lado
a ver passar os navios da ilusão
de ser cavalo andante e pau mandado
sonhando correr mundo em altas cavalarias
fingidas, tristes e desgraçadas
e sem graça alguma!
CANÇÃO XI
Um destes dias faço as malas, vou à vida
ou imigro para os antípodas da utopia!
Por enquanto fico a meio da viagem
ao sabor da aragem dos meus cais de embarque
para a outra banda do tempo perdido
mastigando a fome de desejos
com os cabelos do peito
e acho de bom gosto feito de cinismo
este desdém que cultivo com a raiva masoquista
que me resta por cicatriz indelével
da juvenil castração educativa!
Sempre aquém do pranto mais sincero
desespero em eternas ninharias
e lembranças sem um rosto definido
que só de as murmurar
se me parte a compostura falsa
de adulto com falta de vergonha
e a criança tristonha no âmago de mim
desata a chorar
e eu...fico assim...sem jeito nem juízo!
Ai, que um deste dias perco a cabeça
e despeço-me da escassa coragem
e parto em viagem
Qualquer dia espreguiço-me da alma
com tal força que a desfaço em mil pedaços
pelo mundo todo em nadas repartida
e estico os nervos, gastos de sentirem
os laços do tempo, num solene estoiro!
Qualquer dia tombo nos meus braços
e adormeço-me de vez neste regaço
da identidade que me descuida o ser
e deixo-me caído sobre mim!
Ai, de mim ébrio de místicos delírios
abandonado ao prazer de adormecer tão solitário
quanto ás sombras enterradas entre os lírios
da virgindade perdida num sacrário profanado!
Ai, de mim que vomito a própria alma
que se esfuma em turbilhões de pesadelos
pela calma raiz quadrada dos cabelos!
Ai, pobre de mim que defecando estou
a minha nobre vocação
de macaco poeta impuro e malcriado!
Se me evacuam pelos olhos os miolos orgulhosos
e desfaço-me monturo de mau cheiro
em detritos sólidos, líquidos e gasosos!
Depois que devorei a Lua cheia de velha história
fiquei com ela indigesta na memória
e a cada passo apanho uma camada de maleitas
e diarreia de alma em frases feitas
e queixo-me de insónia e cefaleias de tensão
e hei-de acabar por rebentar de choro
ás gargalhadas e granadas como balões de São João
se não perder de vez a estupidez
por excesso de juízo!
Em vão me lavarei, na inconsciência líquida
dos meus íntimos anseios de pureza,
do viço pegajosos dos desejos sem beleza,
da vontade dissolvente de os sofrer!
De pouco importaria que da alma me despisse
os espírito malignos da vaidade de ser eu!
Ainda que passasse a passear a consciência nua
à noite, à luz dos públicos luzeiros da ilusão
uivando à lua aí, sem dó de mim,
seria sempre a minha solidão a fazer-me perene companhia!
Se andei a perder tempo atrás da pouca sorte
foi depois de ter sido condenado a ser assim
a modos que de costas para o Norte,
com o pecado original pendurado nos testículos!
Mal parido à pressa e ás escuras,
filho duma mãe que me abortou entre cubículos
e me enrolou a pele do rosto e o juízo
num pano roto de lã sujo de mel
e deixou-me perdido, por atraso
no pagamento da renda, ás portas do paraíso!
E teria pasmado a vida inteira
ao calor da fogueira deste Inferno que se odeia
se não tivesse caído ao chão
e perdido o fio à fé, o prumo aos instintos
e o prumo à bitola da razão!
E já nem peso, nem medida me equilibrariam os passos
com que arrasto o padre nosso destes dias todos
desfiando-me um terço de bocejos
e um quarteto de abraços nesta noite
em que dei comigo em agonia
aos beijos num espelho de fantasia
estilhaçado por sete anos de azar e distracção!
Nesta digressão de labiríntica saudade
pelo espírito maligno da minha contradição
não me tendo redimido nem me tendo resgatado
olvidando-me julgando-me encontrado
eis que vou congeminando
a morte lenta da eternidade
embalando-me na dança diletante dos abraços fugazes
nos instantes efémeros pelo tempo perdido a procurá-los!
E é lá onde todos passam simplesmente,
sem pensarem lembrar-se disto mais;
lá onde colhe a gente, sem dar conta,
a miragem da verdura do sorriso
e da vaga imagem o êxtase perene à flor da pele
no despontar da bela aurora
à tona dos olhos d´água e nos lábios de mel,
nas margens dum rio e à beira dum mar
eu canto com voz feérica, como a pedir esmola
o enterro triunfante do meu Estro
e choro de saudade pela homérica viola!
Maestro!...raspe daí a valsa fúnebre!
Pudesse antecipar-me à glória póstuma improvável
do meu próprio luto não temendo
da máscara o esgar nem da nudez,
decrépita dos anos, o público sorriso!
Mas, ai de mim que nem mesmo as aves do paraíso
me farão poleiro no meu mausoléu
nem vão subir ao céu os meus sorrisos mona-lísios
descobertos por compaixão num caco de Bordalo
de penico de bordel pelos ventos alísios!
Ai, nem os meus heróis de banda de cordel
me embrulharão a alma incurável
numa folha de jornal dominical
e o meu corpo retalhado e nu
por toda a parte em mil pedaços repartido
há-de ser esborrachado no chão
dos necrotérios que são os grémios literários!
Ai, de mim que me alegro e arrefeço
e sou e não me existo e sou ninguém
enquanto não desisto de ser Santo ou Vil Diacho
e não passo a ser humano sendo alguém!
Ai, de mim que me contento na tristura
desta ternura doce e calma
que mais do que doer-me a alma me anestesia
de acre-doce e melancólica saudade
pelos raros instantes de felicidade da lembrança
que mais do que ensombrar-me um futuro sem tardança
me iludem na linda maravilha
duma presença assim vivida
e que de prolongar-me com a idade não se finda
a perversão dos gostos com os desgosto da vida!
Ai, que este desvario não me larga
nem se perde atrás do fumo do cigarro
com que escarro distraído, o sem sentido
do pouco da vaidade com que sou o que não sou
suspenso dum qualquer prumo!
Ora pisando o risco em qualquer linha
ora sonâmbulo equilibrista!
Suando a incerteza em sangue e dor
seja cheio de tédio
seja exangue....e sem amor!
E estas rimas de impropérios dum ático sabor
jamais servirão de pretexto a exercícios
de contexto temático e tauromáquico
para que os alunos do terrestre império
se masturbem a preceito em soleníssimas sessões
de gerais desflorações da ingenuidade
debutando nas artes fraudulentas
do orgulho e presunção
em nome da vaidade da Nação!
CANÇÃO XII
Uma grande maçada estrepitosa é o que isto é!
Nesta mascarada de girândolas e gritos
ando a descer comigo ao cemitério
vestido de esfinge sem juízo!
E, depois que me encontrei bem pouco descritivo,
fartei-me de enigmas
e deixo inacabado este mistério
do incesto perverso e primitivo!
Ai, se o meu mal é sono eu deveria ir dormir
para acordar em sobressalto, bem ou mal disposto!
Porém, sem que eu gostasse do meu rosto
fiquei narciso enamorado dos meus sonhos
e acabei em pesadelos mais medonhos
do que o susto do velório dos meus dias
onde como os demais lá vou matando as horas
na dança das delongas e demoras
da procura de ser o que parece ser
e nunca saberemos se somos o que é
até que nos rebente na cabeça
o balão da fantasia e aconteça o que acontece
sermos afinal crescidos em demasia
para andar a dar saltos mortais
por cima das armadilhas incertas e indiscretas
da memória que nos tece a consciência do ser!
E assim, nunca me encontrando certo
nem sequer indefinido até ao fim,
nem seguro do meu digno desatino
de indivíduo dividido...traço a traço...
nas tintas em que me estou
de inútil salvador do que me resta de mim
abraço o fim do mundo em que nasci!
Prolixo e sequioso ...e de valor variável,
para aqui me deixo triste, coração,
no desleixo de me pintar um rosto ansioso
ao de leve...E assim se existe
sofrendo o abandono das promessas
duma morte breve...quando esta se prolonga
quanto se alonga a vida!
Ai, se pelo menos eu pudesse adormecer
sem sobressaltos por ter medo de acordar!
Ai, se eu não tivesse a alma esfarrapada
por excessos de mania em melhorar o pensamento
de certo não metia as mãos nas teias dos sonhos
pelos pés de meia dos desejos ás aranhas
contraídos em bisonhos sentimentos
noites dentro e por dias após dias
à beira da estrada do desespero!
Ai, se eu fosse a calma desse estar p´ra ai
em qualquer lado da linha indecisa do horizonte
na vastidão imprecisa de tidos os possíveis
ou à sombra desta esta árvore impassível
despida pelos dedos do vento
ou fora a linha argêntea e cristalina do ribeiro
e andasse satisfeito, feito cão rafeiro
ou fora ovelha dum rebanho de gente
em tarde de passeio de domingo!
Ai, se alcançasse enfim as soluções de pensamento
para nem sequer as pensar!
Nem saber senão esta inefável evidência
de nada entender das íntimas razões
que nos levassem a ficar aqui e não ali!
Concordante com as minhas incertezas
aceitasse por destino a condição de condenado
à vocação dos encontros sublimes da ilusão
que me encobre na angustia do ser e do não ser!
Ai, que então já não seria eu a desejar-se
o próprio orgulho inconsistente e desmedido
da evidência do vazio nos limites infinitos
da dependência ontológica dos gritos dos sentidos
vão suporte da ilusão dum corpo indefinido
na vertigem de vir a possuir-se
na origem dos seus próprios sorrisos fugidios!
Ai, este inferno mórbido de fatídico delírio
este olhar-se para dentro e dar consigo dividido
oco, intangível e sem sentido!
Ai, este remoinho dum em si profundo
vortex imundo que a si mesmo se devora
trajecto incerto fora pela cauda dum buraco negro
aberto no coração do próprio ser!
Ai, fosse assim eu mesmo sendo apenas isto
sem que me perdesse na loucura em que persisto
ao dissolver-me em raciocínios sem começo
num saber de que padeço como lógica mecânica
dum complexo de culpa cultivada e titânica
num jogo de cefaleias de palavras cruzadas
em todos os sentidos ao sabor
dos vento contrários do destino!
Porém, a tempestade dos lamentos passa
com os últimos lampejos da revolta dos intentos
e eu regresso à guerrilha dos instintos
aos mesmos gritos e suspiros metafísicos
aos renovados sorrisos da impotência da lembrança
e a crise desta angústia da existência
volta a acelerar-me a dança do coração!
E , sem dar conta, aos poucos vendilhando vou
a alma a Deus e ao Diabo e, ai de mim,
pelo menos não fora ao desbarato!
Ah, que a ter de viver assim...suspenso
da minha própria inércia
deveria primeiro devorar-me a consciência
ou alcançar quem me despisse a alma
e me lavasse o sarro do bom senso e da razão!
Ou, então que me tivessem crescido
em vez de, bem nascido e bom mamífero,
pêlos, garras e escamas sobre a pele do corpo
e no lugar dos cabelos, espinhos
e onde me escorre a voz, saísse um pífaro
e dentro do meu crânio...nada...
a não ser a ideia fixa de viver ou de morrer!
Ah, que não desisto de sonhar-me menino semideus
que por engano o pai mimou cedo demais
e logo arrependido deixou nu
e displicentemente triste e belo
sentado na revolta mal contida
ás portas do sol poente e abandonado
atrás das grades da prisão da própria liberdade!
Ah, porém, se me devoro sou pudim de gelatina
moldado numa teia de invisíveis dedos
gratuitamente abstractos...
desesperados e fúteis em demasia!
Ah, fosse eu da fúria a força que percorre
as veias venenosas dos possessos
tivesse leite azedo em vez de linfa
e, nos miolos vinho, azeite e fel!...
Ah, que era então que eu me comprava ao desbarato
ou me vendia deus em minhas mãos
à vida de beato diletante em que me esbanjo
como agora pelos cantos desta hora
onde padeço de tédio sem remédio
agarrado aos fósseis vivos da saudade
dos amores e dos amigos que esqueci
Ah, se pelo menos eu soubesse ser
um badalo do sino do rebanho ressoando
qual livre cidadão mação e bom cristão!
cordeiro submisso, omisso me quisesse
a vegetar sem qu´rer saber demais,
nem ter os olhos despertos sobre a morte
que transpiro pelos poros da ansiedade!
Ah, quem me dera não ser alma de poeta sensível
ou tê-la mas muito bem embalsamada
numa conta bancária grande e bela!
Ah, que eu fosse bem capaz de ressonar
como porco burguês levado a assar
com enfeites metafísicos e sem desculpas
nem escrúpulos políticos nem pruridos estéticos
nem utópicos receios de moral e presunção!
Ah, e sobretudo que eu perdesse esta mania
de sempre ter razão antes de a ter
mesmo quando me descubro a lucidez
de que eu sou somente o burro racional
que o não sabe muito bem, nem é feliz!
Ah, não ter desejos de grandeza de alma
nem maior ambição do que aprender a morrer
envelhecendo nos recantos esquecidos
do muro da memória ao lado dum amor certo e seguro
e, como todos, viveria de ilusão e de fadiga!
Assim desesperado nunca perco a esperança vã
de acordar um dia de manhã com sorte
tendo ganho à morte, na lotaria!
Conformado com a leis seguras do acaso
continuo a imaginar que possa um dia
triunfar para sempre
sem primeiro morrer desta agonia lenta!
Assim, não sabendo respirar em vão
mergulhando no fundo das promessas da alegria
sem suspeitar no começo o riso cadavérico do fim
da minha vocação de imperfeito vencedor de fantasia
eis-me enredado nas malhas do meu ser
que tudo se deseja não sendo coisa alguma!
Afogo-me num mar de sapiência vã
arrastado nos enganos incertos dos instantes
dum presente repetido no futuro da lembrança!
Sem coragem para ir até ao fim
na busca impossível da verdade em desalinho
deveria leiloar-me a qualquer preço
se eu não sofresse de vaidade sem orgulho
e não fora a marioneta do destino
nas mãos dum esboço de incertos projectos
da cínica invenção dum desvario contido
pela minha condição de humano distraído
quando atento ao medo sem sentido
dos momentos inconstantes em que o ser se perpétua!
CANÇÃO XIII
Passo a vida de abalada para outra vida de aventura
mas não vivo em nenhuma esta procura
dum ponto de fuga para onde se me escape a alma
num outro lado da curva da estrada da ilusão
duma outra dimensão do pensamento;
E assim perco o tempo a imaginar o espaço
da entrada triunfante no regaço dos desejos
dum sonho de vitória sobre a morte
da triste sorte do meu dia a dia
monótono, sem graça e sem memória!
E cá me vou deixando mais a andar do que a ficar
sempre...sempre sem chegar a ter coragem de partir
nem que fora para não voltar de parte alguma
já que não consigo imaginar-me a desistir de vez
nem me conformo com o gosto do inconformismo
nem ao desgosto da sábia estupidez
a que afinal me encontro condenado!
E tudo isto assim sem rosto, eu amo
como outrora e amarei até ao fim
tanto e sei lá por quanto tempo mais ainda
e quão mais longe e fundo o ódio me doer
dos que na lembrança desdenharam deste etéreo amor!
Ai, que eu amo e odeio tudo e todos com tal dor
que promíscuo habito nos espaços do sonho
com as sublimes e imundas essências da vontade
de ser dócil senhor da vida
e duro escravo da verdade!
Nem sei se o que abomino mais
nesta angústia dum passado sem história
é o que do Amor/Ódio na memória me resta,
se o saber que as rugas na testa
não são nada do rasto do que fui,
se o rumor que das vagas se dilui
sem conseguir fazer florir
os sentimentos da saudade,
se, o lamento que me deixa a ruminar
remorsos do que não valeu a pena
e, se calhar, me poriam a sorrir agora!
Ai, deveria ter deitado fora a minha infância
quando ainda não sabia ser assim tão infeliz
em teimar não ir perdendo a inocência
com a minha secreta virgindade
do ser que eu amo ser, não sendo nunca
ainda antes de o ser assim negado pela idade!
Estou doente, infectado de gracejos e azedumes
apanhados como balas de mil beijos
na guerra dos instintos de explorados vaga-lumes
da dor e do amor, de ser e de sofrer!
Sou nada, e é tão certo nada ser
quanto é seguro que os meus sonhos mais lembrados
se perdem na ilusão de não ter tempo
para os voltar a sonhar mais outra vez!
Pó do tempo que passa na miragem do saber
sou tudo e nada e tanto e tão pouco tempo
e quanto mais ainda sinto a indecisão
do que nem sei se fui de todo este excesso
que esperei chegar a ser um dia!
Nem Deus nem o Diabo me consolam
nem eu me salvarei de ser o nada que já sou
porque Aquilo que é Ser é tudo quanto existe
e do real do qual se sabe tudo pouco resta!
Do conteúdo do mundo sobra a sombra
do que somos no reverso da moeda
que se troca pela face da aparência
nos encontros concorrentes dos instantes
que em instável conjunto se completam e contrastam
e de alterna exclusão se integram na existência!
Do que se ignora se vislumbra a identidade
da insustentável ligeireza do ser
que apenas permanece como rasto na memória
nas formas da inconstância da aparência
da mutável contingência
do espaço e do tempo das coisas!
Das vitórias da vaidade celebrada
já as cinzas da lembrança se espalharam
sobre as tumbas orgulhosas da vontade!
Semeadas aos quatro ventos da paixão
renasceram nesta dor das idas alegrias
que nos deixam a penar em lágrimas de orvalho
desde o nascer do riso ao abandono do Amor!
Oh, insondável imanência da lúcida demência,
pitagórica mistério da sagaz filosofia!
Se afloramos os cumes do inefável
a verdade nos derrama nos abismos da incerteza!
Ah, saber sublime que nos põe a delirar
sobre o vortex que se rompe
sobre as fendas incisas numa dúvida infinita!
Se a clarividência não nos aniquilar pela loucura
mata-nos de dor de encontro à berma
da valeta do real duro e tangível!
E eis-nos no alto da brancura das montanhas
nus e gelados de saber aterrador
fascinados de estranheza na beleza da morte!
Procuramo-nos nas coisas desta obscura vida
e a verdade oculta da razão
no voo majestoso duma águia tão surreal
quão sublime, a amplidão do céu do pensamento
e eis-nos lançados ao sabor do vento
atraídos por certezas desde a origem do tempo!
Oh, Deuses que jamais seremos!
Oh, Ser de que já somos
esta efémera emergência dum só eu!
Ai, Vida impossível sem a morte dos instantes
Ai, Amor que se destoa ao mitigar a raiva!
CANÇÃO XIV
E a esperança é vã sem esta lucidez,
sem a fé na vitória sobre a guerra invencível
contra a nossa miséria de eternos insatisfeitos!
E ai, de quem se deixar distrair
com discursos generosos!
Nas costas dos oprimidos
ocultou-se sempre a sombra do poder da ordem nova!
A voz que decretar a extinção da tirania
já anda à noite na calada e em surdina
a cavar a sepultura dos Heróis
e a vala comum onde havemos de enterrar
os sonhos imortais ceifados um a um!
E depois a revolta há-de cansar os justos
e havemos de ansiar pela própria sujeição
quando nos fatigarmos com as incertezas
das certezas e loucuras próprias de cada um!
Porém não desesperes visionário da ambição
de ser maior que o ser de todo o mundo
porque a sede de vontade
sobe ao alto e desce ao fundo
para olhar pela pirâmide invertida de Moisés
e toma por panorama a vitória de Ramessés
sobre a quadratura do fuso!
Mas, como quem, qual rã, inchar e ao céu subir
como balão festivo há-de estoirar
há quem se gaste de avidez numa existência dura
invejando da miséria a ligeireza irresponsável
duma dura servidão imaginada de doçura!
Ter orgulho e dignidade e ser humilde ou indigente
é tudo quase...quase equivalente
a muito pouco ou nada, que ninguém quer confundir!
Por pior que seja o verso que deste real se canta
cada um se espanta com o reverso
da sorte que nos couber!
Com nobres aparências se constróem qualidades!
A alteridade das formas invariantes
realçam a diferença que reforça as igualdades!
De coisas vis se veste a glória deste mundo
e se nada valerá tudo, nem é tudo igual a nada,
bom ou vadio, alto ou mesquinho,
com mais ou menos tempo de fermento ou de tempero
consegue-se um bom vinho
para beber antes de azedo
ao tirar-mos as medidas ao nosso próprio caixão!
Com saudades do jardim das maravilhas
atiramo-nos ao ar e partimos o sorriso
das caricaturas com que mascaramos a alegria
para não chorarmos de surpresa
quando o céu nos cai em cima da cabeça!
E em glória e agonia suportamos o prazer
da hemorragia de viver perdendo a vida
tanto mais pressurosos quanto mais nos alivia
com a idade a vontade de sonhar!
Julgando fugir à morte é mais depressa
que nos braços abertos nos deitamos nela
desde o dia em que nascemos finitos e mortais!
Ai, de nós filhos dilectos da má sorte
de olhos abertos para a imperfeição das formas,
carentes da completa saciedade dos desejos,
famintos inconsoláveis de ilusão!
Oh, Ente intransitivo e inefável!
Oh, Ser que só te existes em perene mutação
e se definha assim que pára de inventar-se!
Em cada instante nos promete a um novo céu
e acabamos por cair no mesmo inferno diário!
Deitaremos o fogo ao inverno e afogaremos o estio
e por teimarmos assumir forma divina
criamo-nos demónios à lareira
moldados à imagem semelhante aquela
com que deus nos ilude a identidade!
Uma maçada complicada e divertida
esta coisa de existir no pensamento
por força desta lei universal
da relativa desrazão das relações
peculiares dum real em desastrado
e imparável movimento!
E ao mesmo tempo comprovamos a contento
a unicidade dos plurais
na indiferente igualdade dos gerais!
Ah, que mais que a plenitude do vazio
se me agarra à garganta o asco sem sentido
das palavras que se formam e transformam
sobre o pó dos sons iguais a tudo e a nada!
Só assim é que é possível encontrar
em cada termo a justa sensatez
com que se passa a ser de tudo um pouco
sem que se chegue alguma vez a descobrir
o sentido original de coisa alguma!
E o mais divertido é que este mundo é sisudo
quando não nos convertemos num pouco de coisa séria
sendo um tanto de nada e outro quanto disto tudo!
E á hora e no lugar mais condizente
lá vamos ingerindo mais um trago
por qualquer continente o conteúdo certo
e a seu tempo até mandamos tudo aos Malmequeres!
E assim não sei se a vida a que me agarro
de tanto me pesar me sobra em pranto
ou se um quanto de escarro e de má sorte
me infiltra e tolhe os passos desde que nasci!
Porque afinal a existência resume-se a bem pouco
lutar contra a corrente inglória
das forças do contratempo
conseguindo apenas atrasar o fim da História
entretendo em passatempo o pensamento!
Se sinto é que pressinto em demasia
ou pelo contrário minto
e finjo ser um triste com espírito
ou um pobre diabo de rabo alçado e sem graça!
Já nem nos nervos a ilusão se apaga
e os sentimentos deixaram de os pressentir
e do mundo sorvo o mal e o bem que me convém!
CANÇÃO XV
Ao parir-me a minha mãe guardava um burro
e ao picar-se num cardo deu um urro de susto
e deixou nele o busto e a minha consciência
que nunca mais deixei comer nem ganhar surro!
Já me plantei e arranquei de ponta a ponta!
Já me dei ao trabalho de viver na inconsciência
mas pecador me confessei vezes sem conta!
E se eu me justifico logo fico arrependido
com o dito por não dito e o efeito por fazer
e se prometo me arrependo e se me emendo
deixo sempre outro soneto inacabado!
Tanto faço o que não devo
como caloteio o que me empresta a vida
que penso decidir não fazer nada
ou dar-me um tiro na testa!
Francamente, não é desta ainda
que eu irei ficar de bem
com a pele da minha consciência!
(como se algum dia alguém o tenha estado!)
Ah, e muito menos sentir-me na dos Deuses Imortais
sem ouvidos venais para a calúnia infinda
da crítica em cadeia dos jornais
onde qualquer notável desgraçado
tem a sorte de passar por tudo
a não ser que seja mudo
ou não saiba escrever!
É este o mal de se ser Analfa-bruto:
não ter nome de defunto a defender
nem azar por ser astuto!
E pouco menos sou eu
nas tintas com que me estou
para pintar o fim do mundo das ideias
e que me chamem cobarde e o que quiserem
que só temo a morte estando vivo!
E não ser um gato maltês
com sete bofes de freguês da drogaria
para arriscar na lotaria nacional!
Porém, não é sempre neste meio
que a virtude se mascara
porque então é que eu seria educativo!
Não!...Virtude é que eu não tenho! Nem na cara,
a menos que tivesse a vara de Moisés
que então...passava vida nos Cafés
no grande empenho de lavar dos miolos humanos
os restos dos dez mandamentos.
Bah, que desejais de mim, pregadores de más noites
tranquilo como estou desconsolado à mesa do Café?
Bah, e eu próprio que me quero
nesta permanente e escrupulosa complacência
de penitente que sou quando um pouco macaco
e um pouco menos louco e mau poeta!
Pateta é que eu não sou
ora fascinado ora condoído
por abraços e chicotes de palavras!
Mas que me querem então?
Que me cale de vez
e encha a boca de orações ideológicas
ou preferem que me atrele ao carro eléctrico
aos ouvidos do consenso universal?
Bah, se soubessem o que trago
na ferrugem dos miolos...não teriam dó de mim
quando faço honestas concessões ao bom senso comum!
Ai, de mim, que nem sei se era assim que acabariam
por deixar-me ruminar em paz
os meus próprios exorcismos!
Bah, na caixa craniana há muito se enterrou
a múmia do molusco prematuro da minha alma!
Já "in útero" me apertavam os testículos
e agora que começo a não estar a mais
nesta casa de malucos lúcidos
e de cegos, surdos-mudos que é a Humanidade
aos saltos mortais pela memória universal
eu farto-me de rir e começo a chorar!
Ai...ai...ai, de mim! Disciplina mental, Eu?!
Era o que mais me faltava agora!
Bem me bastou andar à nora
da irrecusável repressão paterna!
Metido na prensa heráldica
duma rígida educação Católica Apostólica Romana
sacana, puritana e diabólica
sei lá que merda de filosofia de vida
destilaria eu se não tivesse
dito Amem à histeria bem educada
da pequena burguesia!
Ah, mas enganei-os bem aos profetas da família!
Há muito que eu desisti da herança castradora
da miséria bem gerida e socialmente bem cotada!
Na asneira de tomar a vida a sério
e passar à concha cúbica do lar
e apanhar bolor a dois...ou três...ou em comuna
antes do tempo, é que eu não caio!
Bom pai de família eu? Não me façam chorar de gozo!
Errei a vocação de capador
ao engolir de susto o meu apito
quando o filho da puta do dito
me quis capar fora de tempo!
Se tiver que ser pai...ou mãe...
ou outra qualquer causa genética de alguém
hei-de matar-me o pai tirano por paixão
de ver passar filhos, cadilhos e pessoas
que me quiserem seguir
nos caminhos inóspitos da minha liberdade!
Mas, assim que hei-de eu fazer?
Passeio-me na Praça da República
e leio os "momentos" que a República Pública
sem ter que defender os ideais republicanos!
Passaram tantos anos desde a Queda da Bastilha
que já ninguém pensa sem uma cartilha qualquer
nesta terra onde se esconde por vaidade a fome!
Ser Anarquista de nome e Pacifista
sem fazer o que se quer
não é melhor do que ir à guerra suja e ficar puro
e não morrer por ter amigos com poder
ou saltar o muro e fugir para França
para ser terrorista à toa e em Lisboa, burguês
ou então ter em África uma lança
e andar por cá na dança Anti-Fachista
porque o mundo é dos cães polícias
e apenas sobrevive quem tiver cabrestos coloridos!
Comodista eu?...meus anseios são modestos
Se o baptizar-me fosse o necessário
para ser o que nem sei se sou
até me chamaria dicionário
só para evitar que me arrumassem na gaveta
dos assuntos liquidados
com a etiqueta mortal: Reaccionário!
e venceria numa drogaria a rotular veneno!
Ai, Coração que se eu fizesse reacção
mesmo num pequeno motor a quatro tempos
não ficava tantas vezes com o rabo entalado
em histórias levadas do diabo!
E tudo por remar contra a maré?!
o que de facto não é de grande sabedoria
para quem perdeu a fé na própria razão!
Como é que hei-de acreditar no fim
da História da Salvação transfigurada
na fábula bucólico-folcolórica
onde nem falta o lobo bobo alcoólico
entre ovelhas ás parelhas e aos saltos!
Comigo nem vale a pena insistir
pois, eu dou a toda a gente a glória de ter razão
já que os que a julgam ter me fazem rir!
Só peço, por favor não me mordam na alma!
Não sei se tenho desses luxos
mas se não tenho voos altos não me enrolo na lama
que o que eu quero é calma...muita calma
e gosto de cama e dum café bem feito!
Bolas, não teremos pelo menos o direito
a nos treinarmos a aguentar de pé
na cela que nos dão na frigideira que é a terra?!
Pois então que façam festas e guerra...
mas sem mim, porra!
Se querem que eu morra esperem pela minha vez
que eu próprio me encarrego da minha ração
de poluição ideológica diária!
De resto até direi que sim
se não for muita maçada (mal iria!)
com cara de relógio de sorrisos!
Afinal esta estrumeira cultural
nem está bem, nem mal...pelo contrário,
cheira é muito mal mas, como há
quem tenha o nariz metido onde não deve
ainda há quem com ou sem ideias leve a melhor
ganhando ás damas e fingindo fazer
a revolta do sermão da montanha
que se emprenhou de fé e até pariu um rato!
Ai, de mim que no fim destas histórias
só me restam memórias a esquecer
nas ideias diligentes da panela ao lume
e o Arroz de Marisco que fica sempre duro!
e a Merda...que feia! Fica sempre a cheirar mal
com ou sem alguma verdade por digerir
pois quem morde sempre o isco é o mexilhão!
E ouçam que eu confesso a derradeira asneira:
a melhor maneira de acabar com este mundo de cão
é não deixar que ninguém o purgue
com uma revolução qualquer!
Aqui-del-rei! Porque afinal, nem há-de tardar
a ir-se embora com o rabo entre as pernas esfoladas
se chegar a passar por Portugal!
É que eu um dia julguei...
(julguei? Ai, quem sou eu para julgar?
Por ventura já fui Rei
ou Procurador à Câmara Concordativa
do Tribunal de Menores de S.Bento?)
Sei lá se julguei ou se pensei
O que eu sei é que nestes tempos
há males bem piores
do que o do crime de lesa Majestade
de arriscar pensar por conta própria!
Ora bolas, sei lá...supus que podia sonhar
(E...que grande bronca! Se julgar em causa própria
dá mau juízo e risco de prisão então sonhar sem mais
dá pesadelo pela certa ou ilusão).
Enfim...eu que sou o mais bêbado dos parvos
dos filhos de Prometeu...que prometeu...prometeu
e por ai ficou a prometer
os ossos dum ofício político
com que nos tapam a boca duma vida de cão!
Ai, só eu feito macaco é que me havia de lembrar
da barbaridade de sonhar e pensar ao mesmo tempo
para aproveitar o ócio das bichas de roda da sorte
para a sopa de caridade
nas cantinas da Universidade
e nos cinemas para cartões de estudantes
lá pelos fins de semana com a morte!
Pois é!...Um dia ousei sonhar
e foi nisto o que deu...
Tive um pesadelo de coisas de pouca dura
tais como: a queda da dita(sempre tesa e)dura;
a transladação das relíquias de S.Tomás
para o panteão da estrela decadente;
o fim da história Ultramontana Submarina;
e o triunfo da Grécia Antiga em Portugal
e que no mundo acabassem as lutas fratricidas
e reinasse enfim a caridade na Irmandade Universal!
Ai, sei lá o que eu sonhei de impensável!
Por exemplo e mais perto de mim
iria trabalhar num jardim escola
para os filhos do povo
já fartos de serem miúdos de cu roto
e andar aos ninhos na quinta velha do Estado novo!
Mas isso sim, e nunca mais deixaria de esperar
pensar até fundir a lâmpada de Aladino
e daria em maluco se escapasse a ter de esperar
pelo fim dos meus dias em Caxias!
O que teria acontecido se não fora acordar
e voltar a pensar melhor
que o que eu tinha a fazer
neste país do fim do mundo
era deixar-me de sonhos sem futuro
e aprender a habitar aos pesadelos da vida!
De resto até se pode existir
limitado a respirar fundo a confiança
de que sol não se irá esquecer
de amanhecer no outro dia
e oxalá lá não nos venha encontrar esborrachados
contra o muro do destino e de barriga vazia!
É que nesta terra de Prometeu
que de tanto prometer a S.Lázaro
também se finou
é mais fácil dar a volta a Portugal num só pneu
do que ter sorte ao esperar
pelo fim dos novos ricos
e da velha Burguesia de chuto!
CANÇÂO XVI
Entretanto cá me vou deixando-me ir,
ora a rir ora a chorar, mais tropeçando
do que andando! P´lo chão ou pelo ar
que a toda a hora se me dá pelos buracos da razão;
ao sabor do vento e do momento;
conforme a lua que passar na rua e me tiver à mão;
atrás da pouca sorte
que é ter que agradecer o acaso à morte
por cada vez que sou corrido a pontapé
de todos os canteiros destes cemitérios
de impropérios aonde teimo ainda entrar de pé!
Replantando-me sempre e uma vez mais...
ainda mais teimoso e paciente do que dantes,
agarro-me ao que encontro pelo chão
deste real descaramento com desdém e com paixão
e, aonde alguns se urinam todos a marcar terreno,
eu acabo no pequeno pesadelo de julgar que é meu
e sem jeito nem proveito sofro a fama
de mal fazer a cama ao meu destino
e deito-me sozinho com o corpo todo ao léu
sob o céu desta existência sentida sem sentido
atrás da dependência dum acaso de improviso!
Lacaio deste Império dos sentidos exaltados
pelo riso imaginado de mistério de Mulher Fatal
corro atrás duma hora de animal à solta
e hei-de acabar por conquistar-me
um susto de indiferente ausência
para sentar à mesa do Café da indecisão
na solidão da tarde dos meus dias
de indif´rença dissolvente e universal!
Ai, que a minha signa de cigano bem pensante
não dá pr´a muito mais
do que andar aos saltos mortais
atrás do rasto vaginal
da aventura da verdade e da mentira
num mundo tal e qual e sempre à toa
ou seja: esta lúcida loucura é bem pouco divertida
mas, sinto-a tão boa e tão bem consentida
como se me fora agrafada e premeditada
burocráticamente numa bola de sabão!
E foi assim possível aprender bem cedo
o quanto é já difícil ressonar sem medo
e depois urrar e dar saltos mortais
sobre um universo em permanente sobressalto
sobre o Suicídio da Razão!
Ah, que a demência normal é o mesmo que o bom senso
a ter neste destino de improviso
e, que sei eu, quiçá a única maneira
de não perder o siso duma vez
sei, lá para doentes como eu a sensatez
é ainda abrir os olhos à razão que cai do céu
embalando em corda bamba a preguiça dos meus dias
e no fundo do abismo, o mundo...a náusea...
o tédio duma vida que se iguala
na ilusão da fantasia da diferença!
Se acaso me acordasse de repente e em sobressalto
do pesadelo em que me esforço por entrar ao alto
transfigurava para sempre a minha vida num inferno
e os meus desejos num suplício!
Porém, o sono só não é tranquilo de abandono
porque o sonho é fugidio
e a inconsciência anseio de placidez
eternamente a tiritar de frio
com receio de se deixar adormecer de vez!
Ah, que nem mesmo a raiva duma ofensa
ás mãos desse inimigo que se ignora
nem deste outro que outrora me olvidei se existe
ou nem sei se vai nascer me põe triste!
Nem é mesmo a angustia da derrota injusta e certa
que me aperta a garganta à força da impotência
deste corpo de paz d´alma de palha
mais pequeno do que a falta de calma da ambição!
O que me deixa bem mais triste e pesaroso
é esta inconsolável sensação da ingratidão
do meu próprio esquecimento
que me faz suspirar por um amor desconhecido
e o receio subtil de vir a descobrir
que nunca tenha havido o paraíso!
E o pior que nos pode acontecer, ai coração!,
será morrer de tédio e de velhice
sem perder a patetice do pecado que é sentir
nunca ter sido amado nem jamais sabido amar!
Porém, em maré baixa ou no mar alto
foi em vão que procuramos
o encanto das sereias, belo e trágico,
no canto das baleis que levamos à extinção!
Descobriremos enfim que outro pecado nos faz falta
e pescaremos em águas turvas os riscos do sorriso
pois amar pode matar e fazer mal à Saúde!
Neste pântano de ideias movediças
onde em vão equilibramos a histeria hipertensiva
da Balança da Mudança das ideias,
da perfeição das Qualidades,
não tarda coração e estouram-se-me as tripas
porque a forma também é um conteúdo!
Levas-me nas ventas com o cheiro
a bafio bem falante
exaurido ás fugas fétida das fífias
das sanitas cerebrais onde caiu
o relógio enferrujado da memória
a bussolar-nos cada instante
adiantado ao fim do nosso eterno recomeço!
E o pior será uivar de boca suja
as límpidas palavras da amargura
duma boa vontade ingenuamente maltratada
pela pulha toga desta que é a arte de viver!
E por favor não me mordam o pescoço aos tornozelos
porque o que eu quero é versos e fazê-los a todos
encantar como bolhas de sabão no ar
e outras palavras de ilusão
e que me deixem ir morrendo de vagar
num calmo conformismo entediado
de indignada sensatez!
Deixem-me curtir os meus juízos
na Lixeira do Museu do Pensamento
cultivar o vício das charadas elegantes
e inebriar-me os nervos com vinagre metafísico!
E partirei então D. Quixote endulcinado
por uma "Belle Epoque Demodé"
arrancada a uma estampa da cartilha maternal
e armado de bengala surrealista
até dou a impressão de ser artista de variedades
sendo um zé-ninguém expressionista
mascarado de Anarco-Socialista!
Partirei à reconquista da bitola universal
ou dos restos placentários
que uma vida de cão me devorou na testa
quando a gente-bem veio na moda a esta festa
do povo como o lobo e picnic(o)aram os cordeiros
espalhando o boato de que andaram
a fornicar a Virgem-Mãe nos relvados uterinos!
Velhos tempos em que as armas e os varões
se assinalavam nas cortinas das janelas
quais anúncios necrológicos homéricos
nos jornais da capital do fim do império!
Oh, anos verdejantes em que nos regavam
as raízes dos dedos com urina vaginal!
(entretanto eu mijava nos lençóis
enquanto fazia o mesmo em pesadelos místicos!)
Depois, a desditosa aprendizagem
da derrota na difícil lição dos meus instintos
do domínio fisiológico dos olhos e buracos
e os primeiros passos atrapalhados
nos caminhos complicado do escada de (in)sucesso escolar!
Ah, o despertar para os encantos lúbricos
da história universal do capuchinho vermelho!
Apanhei estilhaços de olímpicas façanhas
e apanhei maleitas com o cheiro das castanhas
das crises pubertárias de proleta e pobretão!
Do jogo da cabra cega com a lógica formal
e das batalhas navais da geometria racional
guardo o hábito infeliz da falsa amnésia
e a certeza de que a via empírica mais experimentada
não é a única mestra da estratégia
e a necrofilia, a mais nobre profissão!
Ah, ser guardiões dos túmulos dos deuses imortais
dessa tão monumentais ruínas
das entranhas da memória
essas épicas derrotas repetíveis
na razão directa das vitórias prometíveis
ao sabor dos caprichos da fantasia literária!
É por tudo isto que nas bibliotecas nacionais
onde o tempo se engorda de utopias
que é mais bela e fecunda a ironia:
Do estrume fermentado em geração expontânea
vermi-geram professores fungíveros de história
obrigados a comer a fome de saber das criancinhas
ao pequeno almoço numa inglória fama
de manterem o povo na cama da ignorância
de barriga cheia de desejos de miséria.
O povo rico encaixilha-se de glória
para exemplo das formigas
e eu, prenhe de cultura vã
atiro-me ás urtigas!
Junto ao muro vergonhoso da moral de pacotilho
os épicos discursos são escarros
de bazucas sem certeza no gatilho
e infectam-me o canto e a graça de catarro
e apetece-me arrotar com nacional fervor!
Entretanto deixarei que se me parta o eco
desta derradeira gargalhada altissonante
pelos becos da memória alucinada
até que este sabor serôdio de constante passadismo
seja bem amargo na metáfora fecunda
duma garganta funda a devorar
o tácito estribilho deste prolápso-lingua!
A inconstância da girândola do riso
e o soleníssimo desprezo transitório e democrático
dum destino trágico de tauromáquica invenção
contra os cornos da igualdade
faz de todos nós lúcidos saltimbancos
malabaristas mancos saltando como dementes
contra as portas dum parque de campismo
onde começa consentida a popular concentração!
E assim nas multidões promíscuas dissolvidas
somos cheiro aliáceo nos sovacos
e sabor acastanhado a sementes espremidas!
CANÇÂO XVII
Eu, guerrilheiro metralhado por ideias
numa luta inglória contra a repressão da solidão
na história subjectiva da cultura nacional
instituída ditadura subversiva universal e saloia
abro os braços contra o sol da clarabóia
no meu refúgio sótão e desço das colinas
de telhados que alma me espiam
por centenas de antenas de tê-vê inimigas
ao encontro da cidade sitiada
pela opressão abafada deste estio Coimbrão!
No café do Mandarim já mandam os que lá estão
e quando o porco do patrão lá vai
a gente sai e só depois é que então eu entro
e sento-me em frente do reflexo lindo e liquido
do meu rosto gelado numa nobre, imperial
e imortal cerveja de Coimbra...pimba!
O que eu desejava era estar
deitado no pedaço de verdura que resta
da floresta primitiva
na Piscina Municipal deste tão chorado
paraíso do olvido estudantil!
Entretanto sorvo a brisa imaginada fria e calma
e procuro resistir ao desconforto em brasa
das vozes e zumbidos distantes ao meu lado
que me vão adormecendo o pensamento
nesta jaula à mesa do Café!
Ah, esta aragem a escalar-me a espinha!
Uma pedra lisa e leve em sonolência vaga
neste premente sussurro sem assunto
de ter de subir ao cume da ambição
das constrições imediatas
para ao chegar ali olhar sem rumo definido
para o ser sem sentido, ilimitado
e vir cair de novo aprumo
no inferno deste eterno recomeço!
Este pairar acima da ironia complacente
que me circunda de gesticulação muda
até que a tarde tombe de cansaço
e a noite moribunda expluda de calor!
Entretanto evito imaginar-me
a morrer qual cão vadio baleado por ideias negras!
Ah, esta brisa verde enrodilhando-se no chão
do jardim da Sereia onde serei a ideia que não canta
a minha perdição desencantada!
Esta frescura de folhas orvalhadas pela rega
a desejar-se onduladas pelos corpos quentes!
Meus olhos voam como as andorinhas
e vão poisar-me as ideias imprecisas
na indecisão dum açafate de cerejas
desejadas como beijos duma paz longínqua!
Vou para casa esquecer-me numa sesta heróica
desta tarde de cobre cintilante
porque o vento é nostalgia doutro mês de Maio
e a impossível alegria deste tempo revivido!
Ai, deuses tutelares e pequeninos esquecidos
como estátuas calcinadas pelo Sol
refrescai-me a memória
no ar semi-puro que nos fica desta tarde!
Oh, Almas sensíveis e sublimes, voltai a sonhar
com a virgindade perdida no paraíso!
Lembrai-me dos dias das gargantas esturradas
de sede de cantigas entre espigas loiras
e deixai-me beber o prazer da frescura
pelo púcaro de barro das belezas efémeras!
Amanhã talvez tenha que acordar para o desânimo
e sentir quanto deste estio vigoroso
for calor o cheiro a podridão!
Ai, antes de morrer de pasmo ou, sem saber,
de susto, guardaremos o insulto
para aquela tarde de luto
em que a brisa seja o último suspiro
da derradeira andorinha
arquejando num céu de chumbo derretido!
Oh, garras da multifacetada arma cravejai o rosto
informe da revolta que faz guerra e fogo posto
à nossa incauta paz de consciência má!
E o que será da minha adaga praguejante?
Cardo que se murche entre os caninos dentes
crivados com abcessos de desejos obscenos
depois da profissão de fé à mesa do Café
na nova cartilha ideológica revista e ampliada!
Oh, quem se abrir ensanguentada a Profecia
escarrarei as pragas do Egipto
e o anátema das chagas do Anti-Cristo
sobre o olhar d´água nunca visto dum amigo!
Ah, em que futuros se há-de erguer
o alicerce mais seguro
para os novos impérios de mil anos?!
Aonde se abrirá a vala para os canos da vingança
da cagança da vergonha planetária!
Onde erguer o muro ao inseguro orgulho
de sepultar na memória o luto dos agravados
que não tenham a mesma cor da dor!
Guerrilheiro perseguido e logo venerado
abre a palma da mão e cospe-lhe o desvario
da juventude perdida entre os dentes da decepção
e beberás nas veias de inocentes
a raiva de Ciam por ter amado Abel!
Eis o custo da paixão de justiceiro
da indignação que transformou esse assassino
num acto glorioso em nome dos mal julgados
pela mesma fome de fé no mesmo amor!
Oh, mas não deixe o sentimento nobre
vacilar o teu punhal de vingador
porque o cheiro do loureiro à tua porta
já de há muito que anuncia a tua sorte
na impiedade da sentença dos que a morte
não recorda por falharem no destino!
Enquanto a mó pesada da memória
atar os pulsos que seguram este mundo
a tua arma de palavras falsas,
imaginadas de suprema salvação,
irá ao fundo do mar
e a tua esperança tombará
como a noite sobre a aurora
ou, explosão solar na solidão do chão da tua rua,
destruirá no céu a Lua-Nova!
Oh, almas tão sensíveis e sublimes voltai a sonhar
com a pulcra virgindade que perdeu o paraíso!
Lembrai-vos dos dias das gargantas esturradas
pela sede de cantigas loiras entre espigas e papoilas
e deixai-me beber o prazer duma frescura breve
ao de leve pelo púcaro de barro das certezas efémeras!
Amanhã talvez tenha que acordar para o desânimo
e sentir quanto deste estio vigoroso
for calor, o cheiro a podridão!
Ai, antes de morrer de pasmo ou, sem saber,
de susto, guardaremos o luto
para aquela tarde em que a brisa seja o último suspiro
da derradeira andorinha
arquejando num céu de chumbo derretido!
O veneno que um velho amigo preparar
para beber por ti
ora será o teu remédio de loucura
ora o licor que abrasará a tua dor
no crânio dum herói anterior a ti!
Das tábuas gloriosas da desgraça
fabricamos relicários e caixões
e das armas das vitórias impossíveis
estátuas que estilhaçam com mau tempo
e com que se armadilham novos templos
dos mistérios trocados deste mundo:
o réu sai sagrado justiceiro
e o cordeiro expiatório é degolado imaculado
pelos dentes do juiz que faz perjuro
sobre as tripas do assassino redimido!
Oh, que seja hoje que há-de ser escarnecido
quem disser mal de ti para meu bem!
Nem que seja necessário trucidar
o crítico independente dum diário inoportuno
por ter irritado o herói da página primeira
ao mandar procura-lo pela lei
nos cabeçalho do meio!
Sepultar-nos-ão junto aos limites insondáveis
dos impérios celestes de mil anos
reconstruídos dos sonhos de infortúnio
até que venha o dia em que os teus filhos
pagarão com a nossa a sua mesma sorte
e na praça onde fizermos os comícios
de vingança ou de vitória
virão a ser a dedo apontados como escravos
se, traídos, não tombarem inocentes
na vala mais comum dos abortos e falhados
que a história recolher antes do tempo
ou do lado errado duma guerra suja!
Das cinzas da derrota dos eternos condenados
pela luz crepuscular dos orgulhosos
despontará a mítica ilusão
da luz do cogumelo da vingança do Diabo
e das ruínas dos Impérios milenares acordará
a besta que parir por toda a parte o novo ser
sobre cardos de ideias e entre lírios de dor
e a paz eterna há-de vencer e dominar a Sociedade!
Ai, doce respirar de essências místicas
destilamento inebriante de papoilas em fogo!
Furtaremos os dias aos fantasmas do futuro
deitados à sombra das sementes do Diabo
queimaremos o estômago com ácidos propósitos
e iremos vomitando pesadelos de papel
espilrando gritos e fragrâncias coloridas
dançaremos drogados e rotos como cadáveres
de estrelas decadentes em noite de carnaval
numa orgia infernal de orgasmos mascarados
até que o esperma jorre verde
e as virgens cheirem mal e permaneça tudo
grandiloquentemente igual e ordinário!
Então à manhã será a madrugada prometida
a acordar dos pesadelos do futuro
e há-de arrombar-se a porta dos corrais
dos lúbricos suínos já cevados pelo ópio popular
que hão-de estrumar a terra com a boa nova
acumulado em séculos e séculos de enganos!
E, ao som dos hinos fanfarrões electrizados
despontarão roseiras bravas nos fuzis
frutificando quais viris donzelas
entre vagas de pragas de pregões ás janelas
e em toda a parte há-de ficar a segredar-se
da próxima chegada do comboio do progresso
expresso cósmico liberto na amplidão
da inglória escravidão da liberdade humana!
Já despem o linho branco os sacerdotes indignos
das vestes negras dos albinos núbios
e as amazonas vermelhas couraçam os seios
com coletes de Vénus de metal em brasa
e no altar das forças das obscuras origens
afia-se o bico das aves com vertigens
e as águias de capoeira se depenam com pena
da sorte negra das brancas pombas da paz!
Quando ateias são alvo de tiro aos pratos
se beatas, leiloadas pelos papas
nas criptas das igrejas dos cambistas canibais
Do sangue do cordeiro há-de fazer o lobo sarrabulho
e servi-lo com entulho modernista ao povo
liberto do poder incerto das iminência pardas
num sabático festim neo-proto-visigótico
ao som de multidão da confusão geral!
Quando as trombas dos bizantinos ídolos
forem lançados ás sanitas de avião
ide-los pescar Ho, fermento de Hereges
como mandam as "leges artis"
para tocardes os hinos em trombetas de Plutónio
porque o demónio anda correr de Lamborguini
na colunata de Bernini ao sol-posto!
CANÇÂO XVIII
Ai, do ignóbil mistério a revelar:
Soltou-se das escolas à tardinha o dinossauro
e anda feio, de pau feito Joanino a meter medo
às criancinhas que sonharam fazer da escola um jardim!
Às horas de ponta e mola
salivando-se de gula por miolos bempensantes
vagueiam num tráfico ilícito de santos inocentes !
Ao virar duma esquina das cidades
deste século de orgulho democrático
um novo festival de espectros se desenha:
Os cavalos do Apocalipse Joanino
fartara-se de esconder o segredo de Fátima
e soltaram-se do livro branco do mistério
e fumaram haxixe e: um anda a puxar carros
de assalto na guerrilha dos deuses metamórficos
na quarta parte do mundo.!
O segundo urinou-se no deserto de Sael
e na décima parte desta terra
fez avançar o deserto e na outra
fez cair a chuva azeda e o terceiro é garimpeiro,
abomina ecologia e transpira gás sulfídrico
por um motor a vapor de vários tempos !
O quarto acaba de nascer duma semente suicida
dos amores entre Apolo e Dioniso
e o seu sustento é o pânico venéreo
entre alegres amantes duma fruta proibida !
Em maré de caça ás bruxas com bolor
já ninguém faz cultura com amor
com medo do peste(e)sida
e haverá masturbações gerais no terreiro do paço
em vez de ejaculações per cóccix
no traseiro do banco dos taxistas
e nas barbas do profeta !
E o mais cómico de toda esta história
é que acabo de me ver excomungado ab eternum
do paraíso terrestre do futuro na Sibéria
por não ter acreditado nos mistérios da ciência
Tudo começou numa taberna de vinho a martelo !
Ninguém gostou da nova bebedeira !
Começou por brincadeira entre gente ingénua
com a mente feita em água benta
pelo cheiro milenar dos castiçais
e acabou na revolta sangrenta duma aposta
num final feliz da fábula do lobo e do cordeiro !
Não tarda e os proletários revoltados
andarão mais mansos do que os bois capados
e serão sacerdotes ou pastores da serra
e prevejo mesmo a confusão que é não saber
quem há-de declarar a guerra ao fim da história !
De momento é pelos desmesurados olhos
da secura literária
que devoro a eternidade do saber empacotado
numa folha de jornal de poluição diária !
Ah, cedo apanharão bolor os meus instintos
que perderam o viço de amachucados
como andam no suor de cada dia sem sentido !
Oh, ingénua mania de esperar ainda salvação
para a doença da dor de alma !
Mas quem nos lavaria da lembrança
este sabor a sangue ?
Ai, qual o juiz supremo a declarar-nos
inocentes para toda a eternidade
dos gestos assassinos
(insuportáveis por serem dependentes
deste incómoda liberdade de decidir à toa
sob a pressão da vontade dos outros)
cometidos sem saber
em nome da lei da convivência natural ?
Ah, quem nos dá a beber das águas claras
da fonte da verdade das origens esquecidas
secos com o tempo...como os nossos desejos...
como os nossos anseios mais ingénuos ?!
Quem nos vai apagar na dúbia percepção
dos olhos, a translúcida visão
infiltrada como praga no mais fundo do ser
até à inconsciência reflexiva
mesmo nas mais belas ilusões
e nos mais hediondos desesperos !
Ai, enfim que sem fé em nada mais
como me quem me hei-de afastar da encenação,
monótona na variada repetição do tema,
duma vida fascinada em demasia
pela poesia secular da expiação
da verdade empoeirada de mentira !?
Enganado pela fé na razão pura
caio nas rasteiras da impostura
da efémera beleza dos instantes
sem que chegue a ter nojo ou decepção moral
do mau gosto de teimar respirar
este vício de forma que é ainda crer
na nobreza de alma de viver o sacrifício
de ser filho do homem !
Condena-se quem culpa o seu destino
e assim se faz indigno de desculpa
assumindo o seu lugar de desatino
escolhendo o caminho à sua própria loucura
entregando-se ao carrasco por volúpia,
procura dar a volta e torna mais culpado ainda !
Desde o dia em que os Penates foram de penantes
que é tudo como de antes de Dante o ter inventado !
Que são as nossas culpas ao pé de outras
cometida pela história em nosso nome !
Nada!...porém a nossa fome de vaidade
obriga-nos a pôr no nosso mundo a qualidade
que cada um souber e for capaz de construir !
Tudo é lícito enquanto é ignorado ou for omisso
na vontade dos juizes porque a lei é cega
e não consegue ver no escuro o crime solitário
e tudo o mais que não seja necessário
para calar a voz da indignação comum
da social conveniência
e cada ética tem a sua moda estética
e os vícios privados, o preço a pagar
pelas públicas virtudes !
Ao crente é tão difícil a verdade
quanto é cara a liberdade
a quem se perde de paixão!
Almejar a salvação antes dum palmo do nariz,
ver a fé lançar raiz insidiosa sobre a testa
eis a esperança do martírio: transportar em festa
o que, de tanto se roer e já delírio triunfante!
Já mem sequer se sente o que se arrasta às costas!
Ai, que digno de mera compaixão
é só mesmo o simplório verdadeiro !
Temer ser condenado
ou indigno de salvação
só pode desculpar-se se no crime
houver inépcia de intenção
ou jactância de forma e incauta presunção !
Na gestão deste homérico negócio
de não nos afogarmos num mar de ócio permissivo
falecemos nas mãos da impiedade divina
ao sofrer o castigo da nossa ideia de justiça !
Enfim, viver não é castigo...
e o perigo vem da nossa fantasia !
Contra os golpes dos desencontros
inevitáveis da sorte
inventamos o reflexo de defesa
que é a morte em fogo lento
ás mãos impiedosas da moral e do dever !
Mas se tenho virtude é por andar ás voltas
da existência com a cruz da consciência ás costas
atadas por complexos de desculpas e pecados
e impotente ao desatar o nó deste segredo
de me saber culpado do degredo que escolhi
duvidando sem saber dos vícios da memória !
Porém, não tendo garras nem da forma o engodo
nem as armas da artística aparência
capaz de dar-me consistência,
nem fama nem fortuna
(e muito menos glória) alcançarei um dia !
Consolo-me sabendo que afinal
só nos condenamos se escolher-mos o suicídio
ou se andarmos distraídos em caminhos apertados
ou tivermos nascido alegres inimputáveis
por nada dito fazer sentido
ou se recusarmos por capricho a mão do acaso !
Contra os enredos deste amor à vida
enleamo-nos nas malhas deste medo
de deixar de ser o ser que não sabemos ser
e, o Império do desejo de existir nos tece !
A vida o que é? Ai, quem o sabe...
um pouco disto tudo e nada é
e muito mais ainda quando nela temos fé
e o que dela não queremos rejeitar
e só se cansa de sofre-lhe a dura carga
quem dum trago a pega enquanto dura e logo a larga
ou quem não finda de a ter por praga
a ela se entregar pelo prazer de a perder !
Bah, que se este céu de chumbo derretido
não fora poluído e não tivesse estrelas de latão
eu até seria chulo ou bom marido da existência
ou capataz da minha própria servidão !
Porém, a pouco e pouco é que eu me afogo
no néctar da vingança universal
e em vão me salvarei sonhando-me liberto
da vaidade da verdade, de corpo sempre aberto
ás caricias do tédio !
Á força de em vão nos desejarmos mais felizes
envelhecemos de rancor e de ilusão
num chão que se dissolve nos delírios da razão
onde perco as raízes dos meus nervos !
Ah, que lucidez é uma doença incurável !
Apanhamos o vicio desta dúvida metódica
e nunca mais se volta a ter sossego !
CANÇÃO XIX
Glória e louvor a ti
divina Terra-Mãe da Natureza
"per secula seculorum"!
Castamente despida da aspereza
dos ventos do fim do inverno !
Dissipando das nuvens os medos e degredos
vens derramar-te em flores de bem e mal parecer
pelas brisas das demoras
e nos abraços das horas breves do quintal,
nas fendas das fragas da montanha
e nos regaços do vale !
A ti, Oh terra mãe me rendo e adoro
ajoelhado-me as raízes em teu solo
e os pesadelos do meu sono
nos cabelos vegetais do teu regaço montanhoso !
Nestes tempos de terror velado
há que ressuscitar-te,
Natureza morta em vias de extinção !
E a história deste mundo recomeçará
no marulhar das águas novas do ribeiro
entre um coro de ervas úteis e daninhas
fecundadas de verdura e de frescura
pelo orvalho da aurora
no rito original do despontar da Primavera !
E o frio da invernia já distante
range os fortes dentes no dorso da serrania
enquanto estala no ar a gargalhada vegetal
desta manhã chuvosa como mês de Abril !
Ai, enjeitado coração de poeta melancólico
feito alcoólico bucólico por doença de saudade
há que inventar a poesia a toda a hora
nos meus olhos derramada
em molhos de nabos, grelos e tristeza
e outra hortaliça do quintal
estrumado de miséria humana todo o ano !
Ai, coração se ainda restam cardos
onde perder a consciência deste mundo moribundo
há que adorá-los como deuses pequeninos
enquanto a terra não morrer de susto
ou atolada de tédio ou sufocada em sucata
pela vil monotonia dos sonhos mercantis !
Ai, canta coração ferido de poeta mal nascido
a mãe coragem desta terra transmontana
abandonada à histórica pilhagem
das corujas citadinas peregrinas;
despovoada pela fome hemorrágica
dos filhos da sua mãe pródigos de saudade
que partiram...voltaram...
partiram...e nunca mais voltaram !
Ai, coração de alma perversa
de aprendiz de adivinho sem juízo !
Tu, que te quiseste deus em minha mão
tomba e apodrece a meus pés
e fecunda as raízes neste chão !
Ai, canta coração a Natureza Megalítica
Diva Mater das essências uterinas
consubstanciadas no pão que a pega não comeu
escondido no fundo duma arca de cereal
arrombada pelo fisco endémico;
consagradas nos lagares das uvas
que a perdiz não viu no vinho
que se o padre cura não bebeu
lhe pôs a Igreja em cima;
iluminadas no azeite da candeia
que a coruja não bebeu!
E entretanto coração amolecido, é com raiva
que se esconde entre pedra e troviscos
no seu ventre empedernido
o mistério do paraíso perdido !
Só a pega aristocrática riria
por me sentir em teu agreste destino
qual imagem primordial transformada espécie
em vias de extinção !
Quem poderá condenar-me por te amar de longe
ideia arquética do mundo original
condenada a sufocar de medo
em meu degredo de exilado urbano !
Ai, quem ousaria apagar-te
da minha memória de visões menstruadas
meu berço de giestas que urinei floridas
ao aprender o gozo do teu nome, minha terra !
Ai, minha ciclópica e Megalítica deusa
esculpida na melhor cantaria da serrania
semeada de mirífico rosmano !
Em teu regaço já murchou a flor da laranjeira ?
O teu o mosto azedo deixou de fazer rir ?
Voltará o sol por muito tempo ainda
a por o fogo ao xisto do casario
e as rolas vão fazer ainda o ninho
na rama das oliveiras ?
Ai, coração fugi de casa um dia
com a saudade feita esta dor de barriga
e agora dói-me a alma perseguida
pela pressa de chegar ao fim da história antes do tempo !
Ai, coração andarás de gatas pelo chão
atrás do rasto virginal
desfeito na poeira das lembranças ígneas
em busca desse cheiro umbilical
a queijo com sabor a folhas de carrasco !
Ai, coração hei-de lembrar-me
imaginado parido e enjeitado entre espigas
por trás das montanhas do calcanhar do mundo
mesmo quando o solo moribundo do planeta terra
me envenenar ou me embotar as narinas.
CANÇÃO XX
Ai, irmão, que fizeste ao nosso mundo?
Será verdade o que pressinto acontecer-lhe?
Apodrecem-lhe os ossos na palma da mão!...
Um pus vermelho e espesso purga-lhe da testa
e a falta de verdura lhe envenena a alma!...
Ah, irmão, que veneno deste ao nosso mundo?
Que é feito da voz da festa
que costumávamos dar nos solstícios do verão?
Esse estio glorioso que nos geme esburacado
do terror dos nossos sonhos?
E os versos...os nossos versos encantados?
Que e feito dos versos pendurados
nos galhos dos salgueiros, meu irmão?
Ah, irmão, o que fizeste aos nossos dias?
É certo isto que eu vejo?!...
Nossos dias contados e recortados
como bagos de vindima à pálida cor dos astros
que esmorecem de dor ao pé destes instantes
de lenta agonia que o são já !
É o fim do nosso canto
de promessas ingénuas, meu irmão!
Fizeste das cidades uma fábrica de loucos
com prisão de ventre e cólicas horríveis !
Enlataram o sol numa fornalha de progresso
que nos devora a paz e nos apaga e enferruja
e faz da terra um chão deserto
onde os passos encalham no ruído
e o silêncio nos entulha de ruínas vivas !
Os olhos da manhã já se não abrem
porque sofrem pesadelos dum Inferno de Dante
com estios como invernos nucleares!
Chove vinagre nas florestas onde os vermes
enrodilhados em plásticos sufocam de calor
e os carros que transitam funerários já vomitam
gás sulfídrico no ar que empesta o mar!
Ai, meu lascivo irmão, tu descobriste o Mar
que embarcou nos teus amores em caravelas !
A Grande Mar que resta da matriz primordial
do Oceano Ultramarino nunca tanto navegado
por esquadras de naus foi penetrada a fundo
pelas tuas armadas couraçadas de ir à guerra !
Depois de tanto usada e abusada
deixaste-a abandonada à sorte de negreiros
que a violaram como fósseis submarinos nucleares
em super petroleiros porcos, mal lavados,
e foste namorar a ecologia
à proa de navios que são luxo tóxico !
Por isso é que ela sofre como um câncer uterino
e menstrua corrimentos de alcatrão e invade as praias
com marés negras de chumbo !
E os rios...Ai, as veias lacrimais dos teus poetas
são cloacas já fétida e feias
que desde as serras vão morrendo de moléstia mole !
Nestes tempos que se escorrem para a Morte
os anos já não têm primaveras
nem os negrilhos, a sorte de florir !
Ai, irmão o que se passa com os sinais
dos tempos que não virão a ver o estio...
porque nestes proibiste o brio do teu riso
e os olhos secos das crianças pisam-se nas ruas
onde a toda hora passam funerais de esperança,
de cães atropelados pelos carros apressados
e pardais !
Nas próximas noites ficaremos acordados
atónicos ao olhar a lua couraçada
com mil projectos atómicos !
Já se tranca em casa o medo e adormece-se com ele
e as aves se não acordam sufocadas pelo ar
apodrecem vivas quando poisam no mar !
Ai, meu irmão, meter-nos-ão a todos
numa manta de retalhos
de arame farpado com buracos subterrâneos !
E para quê se tínhamos a cor azul do céu
antes de haver Isótopos no ar ?!
Nestes dias de medo indivisível
ninguém se mira ao espelho com receio de te ver !
Depois que amassaste o sol
num disco vermelho de pragas e fúrias de Vulcões
para nos aniquilar na noite derradeira
da tua apoteótica loucura,
da tua vil e vergonhosa vitória
apocalíptica e final !
Ai, meu amado irmão, quem devorou os teus miolos
e deixou em seu lugar
esta bomba de relógio enferrujado
a bater horas letais
pesadas como chumbo e a gangrenar o ódio
destilado a conta gotas nas gargantas roucas
dos que cantam em surdina velhos hinos de embalar !
Ai, meu irmão, os teus crimes imortais
são ainda mais feios do que os conta a nossa história!
Não ficaste contente em teres comido
ao pequeno almoço, o moço efeminado e o belo Abel
e já mandaste empalar o cão raivoso de Caim
por ter afuçanhado, sem pagar, as próprias tripas
e ficaste...Oh !...caim !...caim !...
com inveja de Nitsche que num golpe de rins
de entendimento encomendou ao Super Homem,
num leilão de mitos académicos
a alma que ao diabo tu vendeste em Ego
por trinta e três vinténs
e assim sublimemente aniquilaste o mundo
num crepúsculo divino !
Ai, meu querido irmão doido varrido pelo vento
semeado ao relento nesta terra quente
dos homens e das gentes que com fome são a carne
dos heróis para canhão que vão sem nome
à guerra sem saber que são semente
podre, poluída, doente e envenenada
pelo odre da revolta
inundando uma após outra todas as nações da terra
para que colhêssemos os cardos da suspeita
das ideias desta peste antiga...
num monte de relâmpagos sangrentos e fatais !
Lembras-te meu irmão, do filho que te morreu ?
Bebeste toda a noite o riso à gargalhada
dos amigos de infância
que abandonaste ao romper da madrugada
para entrar na ânsia dos negócios
da batalha do progresso !
De regresso, ultrapassas-te na curva
dos excessos alcoólicos da vida
a morte dos teus filhos
que agora são notícia trágica diária !
Mil anos que renasça e não me esquecerei
do cheiro a óleo que senti no ódio derramado
sobre o pez da estrada incendiada
quando arrastei o cadáver dos teus filhos pródigos
pelas fragas do deserto traiçoeiro
onde enterraste os nossos sonhos de outrora
misturados com o sangue que raiava a aurora!
Nas mãos sujas de pólvora apertavam um rastilho
e uma agulha de heroina nas virilhas
infectada de vinganças atrasadas
contra todos nós !
Quis lavar-lhes o rosto incerto
da lama, da blasfémia, do destino que escolhemos
mas havia veneno em todos os ribeiros
e o cheios dos abutres que extintinguimos
e ali ficou só, insepulto e amortalhado
sob um manto de raiva e de ignomínia !
Ai, irmão porque é que transformaste o sono humano
num ressonar sobressaltado de Terror ?
Estes passos de aço perdidos na rua a horas tardias
sustos, socos, tiros, gritos !
Latas e chapas retorcidas de automóveis;
flaches de néon e sirenes de polícia;
panfletos com sida, agulhas de insulina,
guerras de asneiras e violência por satélite
a meterem-se no sono de mãos frias !...
Algo é duro e corta...
Lâminas de barba, armas brancas...e punhais...
e mais sangue nos umbrais da porta !
Ah, meu irmão que os nossos belos pesadelos
enchem de lodo os rios e estiolam as fontes !
Deixam cruzes e suásticas nas pontes
cobrem a relva de papel de jornal
e secam os prados !
Matam as feras e os gados,
inundam as cidades e as serras
e tingem de vermelho os oceanos,
espalham-se no ar e incendeiam o céu!
Pegam fogo à lua-cheia, explode o Sol de susto
e tudo se afoga em luto e nada poupam !
Extingue-se a luz da vida e se apaga a aurora
e do canto dos homens faz-se um ronco de terror !
Porque tombam fulminadas como espigas verdes
as cantigas das ceifeiras dos nossos pesadelos
com os gritos de dor das mulheres
que ficam por fecundar ?!
Quando as amo é com terror e palpo-lhes o medo
no suor viscoso com que transpiramos
a paixão destes jogos de degredo e morte !
E fumamos escarros pela ponta de cigarros
apanhados no lixo do cinzeiro da sorte
para espantar as dúvidas horríveis que sentimos
quando tropeçamos nos dedos, nos membros
e nas carnes divididas e nas poças de sangue
escorrendo das morgues dos hospícios da loucura !
Ai, irmão quanto me dói o nosso fim
que pressinto encrespado nos teus lábios
ferro-em-brasa como a boca dos vulcões
vomitando cogumelos venenosos
dos abcessos dentários de pus verde nuclear
nos ramos descarnados das videiras
dos nossos sonhos de andorinha
a que cortastes as asas !...
Será a agonia lenta a prolongar
o frio e o vazio do universo !
Será a tua e a nossa triste morte!
Será o fim do mundo em verso de quebranto !
Porém, meu irmão, quis para ti um outro canto
e apenas proclamar em toda a parte
a sorte dos teu louros de vitória sobre o mal !
Aos teus anseios desejava bons agouros
se não visse a tua estrela estilhaçar-se
contra o muro da tua odiosa mentira !
Se as tuas belas cidades não tivessem já
as entranhas corrompidas de ambição !
Quisera ver-te rei e coroado de beijos;
bailar em tua honra nos terreiros;
cobri-te de emoções ! Oh, anelar-te os dedos !
Ver nos teus olhos o brilho dos desejos
e ouvir contigo o canto alegre dos poetas !
Talhar-te semideus por minha mão,
fazer-te romarias , lindas catedrais
e enlaçar-te o cabelo com grinaldas
e oferendas imortais !
Sonhei o teu futuro inscrito nas estrelas,
profetizar em verso os teus beijos espalhados
no rosto dos teus filhos a brincarem
c´o a magia das forças do universo !
Quisera ver-te rei e coroado de beijos;
bailar em tua honra nos terreiros;
cobri-te de emoções! Oh, anelar-te os dedos!
Ver nos teus olhos o brilho dos desejos
e ouvir contigo o canto alegre dos poetas !
Talhar-te semideus por minha mão,
fazer-te romarias , lindas catedrais
e enlaçar-te o cabelo com grinaldas
e oferendas imortais !
Sonhei o teu futuro inscrito nas estrelas,
profetizar em verso os teus beijos espalhados
no rosto dos teus filhos a brincarem
c´o a magia das forças do Universo !
Ai, porém meu irmão, para ti e para nós...
temos mãos ensanguentadas!
Ai, como havemos de abraçar os nossos filhos ?
Ai, quem nos há-de amar ?!
E ai, como dói o nosso fim já próximo!
Como sofre o ar envenenado e o mar!
E a flor que na ira desabrochar...
e a brisa das searas sem segadas...
e o verso...o verso por concluir !
Ai, irmão o verso...dos nossos versos
feitos a brincar à luz da Lua !
Que fizestes desses versos de criança
pendurados nos teus olhos de cereja ?
Ai, meu irmão que um dedo escuro
irá ceifar em teu nome a nossa história !
CANÇÃO XXI
Coração, talvez um dia, já cansados
sejamos apanhados pelas garras
dum qualquer lobotomista em formação intensiva
a quem tenhamos vendido a pele e a alma
e então talvez tenhamos enfim calma
ou cirúrgica e infalível sensatez!
Já dizia o poeta que a ansiedade
era um comboio de corda com que brinca o coração!
Se lhe salta a mola do real desejo
desata a bailar qual percevejo
e só para na última estação do desvario!
As enxurradas de águas passadas
chocaram-me as raízes...as minhas mimosas rimas
de pé quebrado e de quebranto
que regava com urina a todo a hora!
Ah, que a teimar neste mórbido propósito
de chegar ao fim do tempo antes do fim
não tarda e acabo em vinha-d´alhos
ou então, Napoleão de cera e naftalina
ou múmia faraónica ou fóssil tecnológico ou eu...
pois os pesadelos da clarividência continuam!
Irei gera-lo em mim esse temor
que venha sufocar-me a ideia
pois mais breves que as caricias duma velha
são os dedos leves das minhas invenções!
Mais lesta do que a morte oculta
nos esgares que o sorriso dificulta
foi sempre a lucidez das gargalhadas amargas
e mal o tempo murcha os beijos de acidez
logo os olhos se renovam de luxúria
e assim persisto e insisto nesta louca cabra cega,
cegarrega de existir porque é preciso
ludibriar o tempo em fantasia!
A graça da desgraça de ganhar a vida
é arriscada a todo o tempo neste jogo,
no vício, no delírio simulado, no recordado olvido
dos lampejos fugazes cintilantemente repetidos
e sempre insidiosamente imaginados
como sendo para sempre e únicos...
mesmo sendo o que são:
sequências da vontade de existir do Ser!
Ah, que não fora o rodopio desta extática visão
da lânguida lassidão de tão orgásmica refrega
da inconstância dos constantes desencontros
gozados em premeditada e vigiada inconsciência
e já o tempo seria eternidade;
Ah, brincar aos nascimentos
das instantâneas emergência sem sentido
como jogos de morte na vidraça do sorriso!
E nós, esbanjadores da dádiva do sonho
já nos teríamos perdido neste cósmico deserto
aberto sobre a quieta eternidade do vazio infinito
e, gota a gota do suor da vida,
de suspiro em sorriso de delírio em fantasia
pagaremos com a vida os dias de loucura;
dos beijos a ousadia à tona dos desejos
como pétalas dum sonho derramado ao vento;
como efémeros anseios de purpúrea vontade;
famintos traficantes de ilusões!
Mas, ai coração dói tanto ser assim
constantemente replantado
das raízes virginais dos meus sentidos
e sempre para o mesmo renascer
diferente e eternamente repetido!
Oh, aves de arribação que se enganaram no bando
tombadas do beiral do conformismo
apanhamos com o susto atirado pelo chão
da luta desigual de ter sempre que fazer o ninho noutro lado!
Ah, esta grande culpa original a ter de inventar de novo
para tirar ao povo o medo da inocência
depois de tanto mal que já foi dito
e feito em seu favor!
Fosse dada liberdade ao impossível sonho de Utopia
e se atrelasse as revoltas pelos cornos da Entropia
ao carro eléctrico da história!
Fosse a ferros provocado o parto da premissa
desta piramidal rotundidade da mentira
a engordar as belas pernas
da histeria burguesa e democrática!
Reinventássemos a cura antes do tempo
da neurose humana
e o sacramento laico duma unção extrema
para um mundo em risco de extinção
transformando o sangue imundo em vinho
e, em licor o sabor igualitário
e a carne dos canhões, em pão saloio!
Mas, ai dos heróis eleitos pela morte
que, na noite dos tempos primitivos comerão
os olhos e os miolos deste povo eleito!
Eia, grande parvo este povo!
se tu não existisses inventavas-te de novo
na plástica massa duma humanidade média
elástica matéria-prima renovável
ao dispor dos impérios como lata ou papel selado!
Eia, mexilhão sempre lixado!
Comestível é preciso mastigar-te bem
e cozinhar-te um tacho ad hoc ou de improviso,
atar-te ao pescoço um guiso e o siso que convém,
rachar-te a cabeça não importa como
e se protestas comes fumo colorido
e depois...Há que cortar-te ás postas
degolar-te as tuas mil cabeças que te nascem
quando te apertam os calos e envia-los de bandeja
ao primeiro presidente vitalício que aparecer
para te fabricar novo destino!
Eia, populacho de inormíssimo costado
de fogacho no cu sempre apertado
hás-de ser enrabado e não gostar
e apenas praguejar e mesmo assim
sem que te peçam desculpas
se não calhar hão-de fazer-te agradecido!
E distraído vais fazer revoluções nas ruas
que voltarás a desfazer se for preciso
como vaca parideira que se presa
e a história há-de engordar à tua custa
e os jornais, espaço e qualidade literária!
Voltarão outras estátuas para as praças
e de ti meu grande povo, pequenino e parvo
dirão as leis que é p´ra teu bem
que tudo isto te farão!
E voltarás a casa porque és bom rapaz,
tens a mulher doente e os filhos p´ra criar
e farta-te depressa a confusão!
Porque a barbárie nem és tu que a fazes
mas, alguém que não tem ases por debaixo do verniz
e faz batota por um triz da tua própria indecisão
deitando a perder o teu labor de paciente construtor
de cidades nas areias do deserto!
Entretanto, dar-te-ão um Hino e uma bandeira
e um festival da Canção Nacional!
Heróis e santos para pendurares na sala de jantar
e em teu nome...e da Nação
voltarás a passar fome de desejos
e os filhos a quem davas beijos de vitória
por tua causa vão mandá-los para a guerra!
E, se não calhar, até te lançarão à perna
na taberna da tua terra a cadela da lei
porque tu és estado e metes medo
e não cumpres como deves
o sacrifício diário do degredo e do trabalho!
Por tua causa fundirão no bronze novo
os mitos futuristas de outros tempos
e hão-de vomitar-te a cara com louvores à tua alma
beijando-te uma mão com mil promessas
e mordendo na outra com os ossos
do cão com que te irão tapar a boca!
Hão-de romper-te os bolsos
e farás jejum da liberdade sete dias por semana
e doze meses no ano comerão da tua pele!
Se não pagares imposto depenar-te-ão as asas
para tua salvação ou de outra coisa qualquer
que à milénios que te fazem esperar
pela tua e pela nossa salvação!!!
Dirão que fumas ópio nas igrejas
e, a bem ou mal, o que é verdade
é que esse vício virtuoso
até te tira as dores de parto...
o teu corpo está farto de gerar os medos
que alimentam os fetos mitológicos!...
E a dor d´alma...
Mexelhão alapado
artilharás a própria lua com projectos nucleares
para que os lobos, em risco de extinção,
não lhe possam uivar na tua rua!...
E a dor de corno...e ainda te dás ares
de raposa tinhosa na vindima
e farejar o mau cheiro da cona da tua prima...
Oh, meu grande povo ouve-me esta profecia:
Há uma culpa que ninguém mais te perdoa!
Em teu nome tu deixas-te assassinar
os teus filhos mais queridos, os teus irmãos amados
os teus grandes amores e os teus melhores amigos,
os teus vizinhos e os teus conhecidos!
Será esta a tua eterna expiação:
Seres povo para sempre...
e o júbilo de todos os senhores presentes e futuros!
E o meu pior quinhão de desespero em tudo isto
é não ser Cristo e ser igual a ti
quando parte integrante do destino
de emigrante neste mundo!
Desde terras sem nome
e do vale ao mais alto
trespassaram assalto
as fronteiras da fome!
E da vez a primeira
morderam no asfalto
calando de bem alto
a destino que os fez!
Por serem zé-ninguém
foram raça em modança
e por terras de França
julgaram-se alguém!
Mas, tão loge eles foram
foi tão funda a esperança
que na Europa uma lança
faz o chão onde moram!
Já não vão a penantes
e se cá são franceses
lá são portugueses
quando são emigrantes!
Inda sorvem a sopa
mas; dão filhos ao mundo
como outrora ao mar fundo
e inventaram a Europa!
CANÇÃO XXII
E é assim que eu sou contigo
um povo bruto, pobre, amargurado e triste
por ter deixado já de ser senhor antigo
sei lá de qual império que nem sei se existe
e em que lenda esquecida se perdeu!
Sei que aqui vim parar desenterrado
para as terras do degredo, esfarrapado e velho!...
Aqui vim ter de assalto como gado de contrabando
na minha dor de ser pedinte com fome de liberdade
numa terra sem Sol onde me expor as raízes!
De cheirar mal nos comboios estrangeiros
e no metro do progresso em que não sei andar
e ter bolor e só saber pensar nos francos
que não tenho a tilintar nos bolsos rotos
para ir mercar o palheiro do vizinho rico!
Quando nasci não tinha pai, nem casa,
nem minha mãe aonde me embalar!
No inverno, o aconchego era uma brasa na lareira
tão primeira como a lua de Janeiro
porque havia ainda mato e rosmaninho
e no estio adormecia como a sesta
o cio entre o rolheiro da vizinha,
que nada do que eu tinha era meu!
Meu, era o céu azul que Deus me deu
e a perdiz que nunca se fez verde
e era minha a andorinha que não ia pôr o ninho
no beiral da casa do vizinho!
Ah, e minha...muito minha era a tristeza
de ser pobre e ter de andar contente
mesmo só, pequenino e não ser gente!
O resto...era tudo do vizinho!
Olhem, que eu nem o sei ler
nem falar, como bem canta estrangeiro!
Não foi por ser pobre que não tive escola
mas, por ser uma esmola não saber!
Os campos eram grandes, tinham dono
e ninhos e o meu pai não era nobre à muito tempo
e pôs-me a trabalhar mal aprendi a andar.
Sei lá! Bebia vinho e tinha sono
e nem sequer aprendi a falar!
Sei que sou pobre, e foi depois de velho
que eu vim perdido a esta terra!
Não que eu quisesse assim fugir à guerra, não
porque as há em toda a parte!
Oh,...que aqui corriam francos nas valetas,
que era só apanhá-los com pás e picaretas
mesmo tendo que ser escravo num pais dos outros
eu que escravo fui da minha escassa liberdade
no meu próprio Portugal dos pequeninos ricos
mesmo tendo que me vender o corpo e alma
já que mais nada tendo e nada sou!...
Ah, se não fosse necessária tanta papelada
para me deixarem trabalhar no meu enterro!
Mas mesmo no desterro fui sempre um deserdado
porque os ossos da miséria
de ser o burro dos outros
esses foram-me deixados abonados!
O meu compadre que Deus o tenha
esse teve melhor sorte que o levou a morte,
ao passar de assalto a fronteira de Espanha!
Ai, que se eu sentisse que valia a pena
não ter a alma de palha nem pequena
e eu até cantava como quem trabalha
alegre e com saudades da terra
em que um dia e por menos se fez ao mar!
E não regressava e ficava e a sofrer
esta dor de não ter o Sol da minha terra
mesmo só, e senhor duma guerra em África
dum passado lendário e sem nobreza
mas aonde ao menos era livre
de ser um pobre poeta
sem ter a tristeza de o saber!
Mas não posso ficar...
Nesta terra não há Sol...nem há azul no Céu
nem as coisas que Deus não me quis dar!
A gente desta terra é complicada demais
e isto de câmbios e contratas
e outras coisas estrangeiras pataratas
é para gente nova e mais esperta
que aprenda a ser senhor e, bem falante!
Já nem mesmo invejo o palheiro do vizinho
e perdi o sentido ao lameiro regadio!
Não penso mais na vinha à beira rio
e já me esqueci das agruras do caminho
que levava aos casais e à quinta do vizinho!
Afinal nem era muito o que sonhei
no meio de tanto que não herdei da sorte!
Tenho mulher e filhos e quer o senhor que eu minta?
Não, não tenho medo da morte
nem de não ter nome para deixar aos meus filhos.
O mar é salgado em Portugal e tem sardinha
e nas serras há amoras e medronhos
e um naco de milho chega para enganar a fome!
Ai, a fome sem nome que me perdeu!
Meu filho mais novo ainda chora coitadinho...
mas não é com fome graças a Deus
porque a minha mulher tem boas tetas
ele é tão pequenino ao pé do outro
que já se tem nas canetas nem parece irmão
e não pesa grandes quilos!
Mas estes fi´-los eu com a minha mulher,
que isto de andar longe
e ter vida de monge nem é vida sequer!...
Já vou ficando velho, são cinquenta estios
pelas eiras dos casais, Janeiros frios
gelos e vendavais! Que quer mais...
mesmo nos corrais eu tenho feito a cama!
Já foi tempo, compreendem. Nesta idade
o que apetece é uma cama bem feita!
Ai, se eu mercasse o palheiro do vizinho
linda casa ali faria...de cal e cantaria!
Ai, não se importem comigo
que há muito que eu não sei já o que digo!
E choro porque lá na terra,
eu tinha um violão que me deu o compadre
que Deus tenha em boa morte como contei já!...
Muito obrigado meus senhores,
com este...como diz...Ah,...passaporte
vou poder encomendar a alma ao meu compadre
fazendo chorar o violão!
Será meu então o Céu e o que Deus não me deu
e esta canção, o pão
do meu rebanho de sonhos contentes!
(Ai, de mim, que não tenho
com que pagar-lhes o trabalho!)
Pela alminha dos seus...eu sei que os senhores
também foram meus vizinhos
e se a coisa não rende...compreendem?
Obrigado!...Muito obrigadinho!...
Com este passaporte vou de Serra em Serra
e passo à minha terra a esperar a morte
e hei-de contentar-me com ter Sol
e jamais me esquecerei do que me disse:
"Sou um povo bruto, amargurado e triste
sei lá patrão do que quinta da fome
senhor dum velho império que já nem existe
e ninguém quer saber quando fui nobre!
Hoje sou este pobre diabo que nem nome tem
perdido aquém-serras de Espanha!
Eu, que fui à guerra em toda a parte
e até nas serras fiz pomares
perdi honra e fortuna, o engenho e a arte
já que escravo sou do fantasma de Alcácer!
Tenho no sangue todo o sal dos mares
e mais a sorte insossa de ser pobre
a amargar-me as sete partes do mundo!
Eu, que pari o mundo ao mundo
que sulquei fundo em meu suor
sou vagabundo entre estranha gente
e ando a cavar fora de casa a minha morte!
E assim canto a minha dor de ser pedinte
e não ter pão de sobra e não ter sorte
e precisar de me exilar numa terra sem Sol
onde sou marginal e fora da lei
para, sem presente que me identifique,
já nem ter nome de gente!
Aqui vim ter na minha dor de ser pedinte
do pão que me não dão na quinta do vizinho
e aqui me faz morrer sem Sol e com Saudade!
Ai, que eu juro que há-de ser de agora
que eu vou saltar por cima do Carvalho
e mostrar quanto valho ao vizinho.
Com este passaporte de repatriado
desço à pátria que me fez envergonhado
e espero pela morte que me vingue!
Meu corpo moribundo há-de ser
o espinho na garganta dos herdados
da sorte deste mundo que não me conhece!
Serei o escarro vivo que semeia
no palheiro aonde nem sei se ali nasci
como ideia da vingança que há-de vir devagarinho
trazer enfim o sol ao céu de toda gente
ou o fim do amor ao próximo vizinho !
CANÇÃO XXIII
Porque há os que de medo aos poucos se amortalham
nos nervos esfranjados pela espera
no silêncio solitário dos cais,
donde a vida não parte nunca a horas,
lançamo-nos saudosos mortos-vivos
à corrente distraída dum devir
em constante desatino e desrazão
e adormecemos à mesa do Café
e, na calma da tarde, a digestão arrasta-se de tédio !
Entorpecem-se-me os sentidos na doçura
larvar da comunhão de outros desejos
suspensos do temor duma existência aérea
dos gracejos da mesa de café do lado !
Oh, ser o marulhento arrolar das vozes e sussurros,
das suaves gargalhadas suspiradas pela brisa breve
ao de leve atiradas de outro modo para o ar
e respiradas noutros climas !
Oh, ser esta indecisa lassitude dos eternos fala-sós,
a imprecisa e descuidada irreferência
espacio-temporal dos passos esquecidos
à beira destas grades dum destino em sugestão
dum portão engalanado de glicínias de veludo !
E além da imagem intima, a frescura
desta aragem olfactiva leve e pura
do jardim da moradia aonde mora
a mulher dos meus sonhos desta hora!
Ela é um desejo, ela é uma rosa
ela é...um sorriso atrás da porta que procuro
na rota do delírio onde inseguro se navega!
Aurora radiosa que nos despe e faz a cama
depois duma semana de procura e solidão,
ela é um beijo breve levemente respirado
imaginado eterno, terno e lindo
e, no fim, a solução deste mistério
do amor em forma e conteúdo de mulher!
Sonharam todos tê-la nua e sua, de exclusivo
virginal, imaculado Malmequer,
de brancura vestida, lavando-nos da loucura
com que o medo e o degredo
nos apressa a salpicá-la !
A ela quase todos entregamos quase tudo:
nossas as armas de furtivos caçadores
incondicionais deste delírio de veludo
feito doce escravidão duma paixão !
Maravilhosamente bela e de cetim vestida
com jóias a cobrimos de vaidade
orgulhosos partilhando-a com a inveja deste mundo
julgando fazer dela a nossa própria identidade !
E é desde o dealbar das consciências soltas
e das pulverulento estruturas indivisas
entre a incisa indecisão dos limitados corpos
e a vastidão dos horizontes da memória
que, difusa e intangível, se insinua e se percebe
a opacidade táctil inefável
dos brancos desejos a corar ao Sol !
Ah, ela é a extensão prolif´rativa
de infinitos seres finitos
na ressonância ilimitada da aparência das coisas !
Ah, que o nos impele à ânsia de tocar a flor da pele
da presença concreta e necessária e pontual
da pélvica certeza dos instantes do amor
é apenas o receio de morrer sozinhos ?
Se me dissolvo em leves incertezas
delimitantemente ilimitadas
é pelo gosto de ser outrem a viver sozinho
nos infinitamente grande e pequenos nadas
do teu ser eu: " Oh,...meu amor !? "
E se me abraço a ti e em mim te aperto
de encontro ao nosso espaço de vontade de existir
certifico-me de ser e de estar vivo em ti
em corpos onde existem eus sujeitos
que se encostam a si mesmo
até que a concha opaca dos objectos se desfaça
como areia entre os dedos
ou gotas de orvalho à flor dos lábios !?
Ah, que ou nos soltamos pela aurora fora
quais botões de rosa...abertos às mãos do Sol
ou seremos a chuva miudinha sobre o pó
da terra que lavramos com os nossos olhos
ou salpicos de sal à beira mar !
O horizonte entardece de presenças evocadas
por esta solitude da emoção
de ser pó ou quase nada
e ser a alma etérea encarcerada
na ilimitada ausência de aparência
e a presença das forças que dão vida
a fazer-nos uma eterna companhia !
Ah, que a viver para sempre ai,...que o fosse
numa tarde de Maio e embalados
pelo marulhar da aragem entre os plátanos
junto à linha do Douro com imagens verde-mar
a ver passar os navios de comboio
e um verão azul ou então a navegar liberto
da humana gravidade em tualhão cinzento
brauneano fandango entre o começo...de mim
e o fim da solidão dos nossos corpos
limitados por essências impalpáveis...
continências etéreas de vagos conteúdos !
Negaremos o medo descobrindo-nos sozinhos
correndo apavorados entre a imensa multidão!
Nesta encruzilhada de estradas sem saída
galgamos prego a fundo numa fuga de cinema
ao encontro do destino deste egocentrismo
insatisfeito numa torre de marfim imaginário
onde a morte nos espreita pela porta do receio
de virmos a ser apenas letra morta
num buraco a mais na manta de retalhos da existência !
Ah, pudéssemos viver a vida toda duma vez
ou então num instante a morte nos devorasse
que nem ainda assim deixávamos de ser
os fantasmas solitários
que somos sobretudo acompanhados !
Porém, o meu egocentrismo é tão profundo
que do mundo sinto apenas nos meus braços
a fadiga de o sentir
e as entranhas ávidas do néctar
que me deixassem a dormir, mesmo a sonhar,
mas, para sempre !
E o universo? Oh, é me tão estranho
como os verso que faço para eu mesmo ler !
Vivemos condenados à perpétua condição
de máscara de concha inquebrantável
da liberdade da nossa solidão fora do Ser !
Somos formas limite à flor da consciência
atormentada com o fim do seu começo
e na ilusão de andar acompanhados
com o gosto da miragem de apenas vislumbrar
o próprio rosto à flor doutro sorriso !
Ah, não reter das margens incorpóreas do meu ser
mais do que as imagens vagas das essências
dum saber indefinido!
E assim me lanço contra factos e juízos,
contra os abraços de aço-pélvico do amor
a dividir-me palmo a palmo
pelo tempo-espaço dentro!
Ah, o amor...esta tontura...esta vertigem,
extático mergulho nos abismos duma origem
no fundo inacessível do teu corpo, meu amor !
Ah, lídima união de beijos narcisistas,
desejos anatómicos palpáveis e sensíveis,
fecundas discussões de sentimento,
indivisas emergência do mistério
de sermos afinal um átomo a mais que se elevou
da poeira cósmica do Ser !
Ao fecharmos este abraço, meu amor
sobro o espaço dos limites dos sentidos
dos entes dérmicos que somos, pelas formas
dos limites opressivos deste nosso egocentrismos,
pelas mãos da solidão destes desejos
a separar-nos e a atrair-nos...
procuramo-nos apenas indivíduos...
nos contornos difusos arrancados à poeira da existência...
como individuâncias deste Ser indivisível !
E seremos aparências de nós mesmos para quê ?...
Por quanto tempo mais...
viveremos separados, meu amor ?
Ainda que escarrássemos a peste,
na cara que não nos responde,
a besta do destino, que é malfeita e feia,
não tem focinho aonde pôr um nome !
Nesta estrumeira de saber acético
toda a opressão estética é mania
e basta ou não basta de loucura
e deixemos à tragédia da comédia a decisão !
Neste lençol de vermes e toupeiras
que é a humanidade aos saltos e soluços
na subconsciente memória da cultura
fincar os pés ou bater a porta e não sair
é o mesmo que ficar em qualquer lado
de pernas para o ar ou bem sentado
à espera dum lugar melhor no outro mundo !
Mendigar igualdade num sonho moribundo
antecipa a humilhação dum iluminismo sem razão !
Cada vez que me mudaram de canteiro ou cemitério
foi sempre este impropério de indiferença...
e um dente a mais arrancado à consciência!
Sempre que ladrei à vida desatenta
taparam-me a garganta com os ossos do ofício
de vidente e cego de nascença!
De tanto rastejar atrás da decepção da salvação
ganhei calos nos miolos e escamas nos sentimentos !
Ah, que eu dava um laço no pescoço
ou deitava-me a um poço feito gato e lagarto
em vez de replantar-me neste vale de lágrimas
onde os lobos apanham os cordeiros
a beber a náusea e depois, em romaria,
lá vamos cantando e rindo à tosquia
e saímos tonsurados não importa quando
pois só nos resta a liberdade
da escravatura consentida
renovada e melhorada de geração em geração !
Mas, pensamos demais...ai, coração
e tanto que esgotamos
os trunfos da vingança...e depois da lucidez !
Ah, cortar as raivosas raízes dos meus pés ?
Oh, sim furar os olhos não vão eles assustarem-se
com as fábulas, parábolas e rábulas da história
cantando o hino da alegria do avesso,
rastejando o subsolo mole da terra
onde os deuses apodrecem imortais !
Junto ao muro do orgulho das ideias belicosas
juntamos os espólios da vergonha
e os Centros Culturais são Mega-catedrais do esquecimento
saudades desenterradas como esp´ranças vãs
que cirúrgica e metafisicamente assassinamos!
Choraremos em vão os companheiros afogados
nesta grande marcha do silêncio
ou no dia da vitória breve contra o medo !
Ah, camaradas, onde estão os vossos nomes
escritos nas artérias da vingança da lembrança
da minha tão inútil mas, eterna, indignação !
Ah, cortar as minhas lindas raízes ?
E dai? Secando ao sol, à espera do futuro
já deixamos de esperar ?
Acordados pela história já deixamos de sonhar?
A filoxera nuclear infectou-nos de ansiedade
e é cedo demais para alguém cantar vitoria
e é ainda mais tarde para alguém chorar !
Ai, aqui, nesta pátria do desencanto,
limite do jardim deste deserto do mau tempo
plantado à beira mar onde já foram navegantes
os sonhos naufragados de imigrantes
da descoberta do fim do recomeço do mundo !
Aqui, ao fim e ao cabo atormentados
somos profetas do azar
e espectros errantes da finis terra !
Aqui, quero ficar ! Aqui, e vivo ou morto!
Coração, só nos resta escolher entre o lodo da memória
e o cascalho dos instantes !
Ou encalho as raízes nas areias,
nas veias ganho vento e, água salgada nas artérias
até que na cabeça me apareça um par de belos unicornes
e, nos cabelos, algas verdes, venenosas...
ou fico para aqui como retalho de batráquio
a esconjurar o fim deste mundo terráqueo
que se esvai masturbação de mil palavras de cultura
e que se vem prostituindo pelas ruas da amargura
mirando-se, como o Eu, num mar, em rodopio de ilusão
no sonho deste orgasmo libertário...
de literárias e solenes soledades!