Figura 1: Atena & Arakne. (Interpretação por IA do pavor de Aracne como se fora o que gerou “o grito de Munch”).
A relação de Ariadne com o mito do novelo de fios que salvaram Teseu do labirinto permite uma identificação, que não é meramente funcional, com Aracne.
Arachne's insolence toward the gods caused Athena to curse her, and Arachne ended up hanging herself, but was then resurrected in the form a spider(maybe her name means, ar-Akh-Neith, i.e., pertaining to the Akh["living spirit"] of a weaver). -- [1]
«Aranha» < Galaico-português aranna < latim arānea (“aranha”)
> It. aragno (obsoleto) > ragno (“aranha”) < Hara-kina > *Hera Gina
ó Grego Antigo ἀράχνη (arákhnē) < *ἀράχνεα (*arákhnea)?
Grego Antigo ἀράχνη (arákhnē) de origem pré-grega desconhecida, embora (obviamente) relacionada com o latim arānea através de um intermediário antigo como *aragnea, ou da mesma fonte desconhecida. Devido a dificuldades fonéticas, o último cenário pode ser mais provável. Não é claro se é a origem do termo latino ou se ambos tiveram origem numa fonte comum diferente. O basco armiarma e aramu podem estar remotamente relacionados com o substrato.
Basc. Ar-mi-ar-ma = aranha = ar-amu, m(ar)asma, ain(ar)ba.
Já é estranho que o basco tenha quatro termo para o mesmo artrópode, mas seja possível que estarem remotamente relacionados com o substrato da aranha é tão aceitável como dar conta de que pode ter havido ressonância por interferência externa, que parece descarada no «marasmo», como na persistência do radical -(ar)-. Notar que o «marasmo» pode ter entrado no basco por absorção directa do grego mărasmós ou a partir do espanhol com a conotação com o «miasma» das teias que as aranhas tecem. De qualquer maneira a identificação de radicais fonéticos não chega para identificar nem a origem nem a semântica do substrato de um nome, que, como veremos adiante terá que ver com a mitologia que lhe anda associada.
Aracne < Aracnia < Arakina < *Ara-Ki-Ana < Harakina < *Kertu + Ana
Arathian > Ary-Atan < Ariaden > Ariadne
Arya Athen = Athena Area.
Palas, já tendo dado a tais discursos gratos ouvidos e louvado os cantos das facundas Aônias e aprovado nelas da justa cólera os efeitos, disse consigo: “Nós também objeto nejamos de louvor; não só louvemos, mas também a nós mesmas engrandeçamos e, a quem tiver em pouco o nosso nume, não se lhe poupe a devida pena”. Ao dizer isto, lembra-se de Aracne, donzela da Meônia, que nas artes do tear se lhe opunha, e não queria ceder-lhe em seus primores. Ela ilustre não era nem por pátria, nem por sangue, mas só pela sua arte.
Seu Pai Ídmon as tingia da púrpura mais fina, e a Mãe, que era já morta, a seu marido se igualava também na baixa origem. Adquirira contudo um grande nome por toda a Lídia em tais subtis tarefas a Filha insigne, bem qu’humilde
Mas vê-las fabricar: tanta a destreza era do seu obrar, tanta a sua arte. Ou ela a rude lã branda fizesse, e a globosa figura a reduzisse; ou armado o tear, a trabalhasse, urdindo os subtis fios obedientes, que no cândido à neve não cediam; ou ela a lã torcesse em veloz fuso ou com pintora agulha recamasse, via-se em tudo, que ensinada fora pela sábia lanífica Minerva. Porém ela negava a grande mestra, ousando até dizer: “Venha; comigo contenda; que não temo ser vencida: Mas se o for, me sujeito a toda a pena”. Velha finge-se Palas; em cãs falsas, muda as madeixas, e uns enfermos membros arrimando a bordão, a Moça busca, e assim lhe diz: “Não traz a velha idade o desprezo consigo: nossos anos devem ser atendidos, porque neles é que a prudência vem. O meu conselho não desprezes; contenta-te co’a fama de seres na tua arte a mais distinta: Cede ao Nume Inventor, perdão lhe pede, que Palas to dará, se lho rogares”. Olha Aracne com vista atravessada para a Deusa encoberta, larga a Obra, e apenas refreando as mãos violentas, com colérico aspecto, ásperas vozes, assim rompe: “Bem mostras, que já tonta a velhice te fez, e grave dano te causa tanta idade. Se tens Nora, se filha tens, vai dar-lhe esse conselho, que eu assaz bom conselho em mim só tenho.
Desse não cuides, que me hei-de aproveitare; firme estou no meu ânimo. Ela mesma por que não vem, e aceita o desafio?” “Sim vem”, responde a Deusa, já deixando o disfarce senil, e a majestade de Palas ostentando.
As Ninfas todas presentes, e as Migdônias a veneram; Aracne unicamente não se assusta, só mostra algum pudor, banhando invita de púrpura o semblante; mas depressa a cor se desvanece: semelhante ao ar, que faz rosado a roxa Aurora, e logo branco o torna o Claro Febo. Prossegue na tarefa, e c’o desejo insano da vitória per si mesma ao seu fado se entrega. Não recusa de Júpiter a Filha o desafio, nem prossegue a avisá-la: entra ao certame, e ambas se põem em partes separadas. Cada qual a urdidura envolve no Órgão, que o pente já separa; a lançadeira através trama o fio em veloz curso, e o travado tecido aperta o pente. Com vestes curtas ambas denodadas, para ficarem ágeis, se dão pressa, e movem para o peito os destros braços, na tarefa enganando-as a Cobiça. Ali se tece púrpura flamante, e se dão tênues, esfumadas sombras, qual costuma pintar Íris teu arco no dilatado Céu, quando aos Solares raios se opõem os líquidos chuveiros: Nele brilham mil cores diferentes, mas não podem os olhos enganados dDiscernir onde as cores se terminam:
Parecem na união, que elas são umas; porém têm (não sei qual) certa dif’rença, quanto mais vão buscando as tênues orlas, cambiando-se as tintas. Nos tecidos tais eram das pinturas os primores, a que realces dava ouro flexível, enriquecendo a história figurada. Palas tecia essa de Marte Rocha no mais alto de Atenas, exprimindo sobre o nome da Terra o pleito antigo. Doze Numes Celestes assentados com gravidade augusta debuxava, e Júpiter no meio presidindo. A cada qual dos Deuses seus semblantes ao vivo declaravam; mais que todos mostra o de Jove, como Rei dos Numes. Em pé representava ao Deus das ondas ferindo c’o Tridente áspera penha, donde saía intrépido cavalo, com cujo generoso dom queria fazer Atenas sua, e dar-lhe o nome.
Ela Palas se opunha armada em guerra embraçando alto escudo, aguda lança brandindo, o forte peito defendendoco’a Égide terrível, e a cabeça armando de elmo. A ação representava de ferir ela a terra ao grave golpe da formidável lança, e brotar dela branca oliveira, grávida de frutos.
Os Deuses assombrados lhe acordavam a vitória, e este ilustre vencimento era o remate da subtil pintura. Para a êmula audaz esta bastava; porém para Ela ver com mais exemplos, que paga deva ser tanta ousadia, teceu-lhe mais em partes separadas outros quatro certames; obras primas expressados nos ângulos do pano. Em figuras subtis, em vivas cores, do antigo Hemon, e Ródope sua Esposa, da Trácia Reis, era a primeira História, passando de mortais a imóveis montes, porque os nomes das sumas Divindades temerários a si atribuíram.
A segunda era o fado miserável da Pigméia Rainha, em Grou mudada por Juno, que a vencera no Certame, e a mandara ao seu povo fazer guerra. N’outro tecido Antígone se via, que ousando contender co’a poderosa consorte do alto Jove, castigadase viu, feita cegonha, sem valer-lhe a Pátria Tróia, e o Pai Laomendonte, para não se vestir de brancas penas, e não soar c’o crepitante bico.
Figura 2: Luigi Ademollo - Arachne into a Spider or Aranne Trasformata in Ragno, Book VI illustration from Ovids Metamorphoses. Florence 1832 (hand-coloured engraving) - (MeisterDrucke-170147).
O último Quadro Cínara ocupava, privado de suas Filhas, que já pedras servindo de degraus ao sacro Templo por castigo dos Deuses, abraçava em lastimosa ação prostrado
Para ver era, o como pavorosa as plantas recolhia, receando, que as ondas empoladas lhe tocassem. A Astéria desenhou na teia ao vivo com Júpiter lutando em águia oculto; desenhou Leda, já cedendo às asas do mesmo falaz Deus mudado em Cisne, e outras traças de Jove exprime aos olhos. Aqui fingindo Sátiro, dois filhos dá de Necteu à Filha: ali engana Alcmena, a Anfitrião roubando a imagem: Aqui em chuva de ouro a Dânae ilude, e em fogo a Egina: ali pastor procura enganar a Mnemosine, e a Déolis em serpente escondido. A ti, Netuno, quis exprimir também nas várias formas, que Amor te fez tomar; já de novilho buscando a Filha de Éolo; na imagem já de Enipe, as Aloídes gerando,e por Bisaltes já feito Carneiro. Por ele na figura de um ginete iludida expressava a loura Ceres; mudado em ave a horrífica Medusa fazia Mãe do alígero Cavalo, e encoberto
Viu Palas primor tanto, e desprezá-lo não pôde; a mesma Inveja deixaria de denegrir tão finas subtilezas; Porém irou-se a armígera Deidade ao ver tecidos os Celestes Crimes.
Aracne era uma jovem reputada tecelã da Lídia que ousou desafiar Atena, também esta, uma divina tecedeira. Ora, estas competências artesanais faziam parte do seu dote deusa das artes e estratégias que tinha o mocho da sabedoria por animal totémico. Estas competências de tecedeira das malhas do destino dos mortais teriam sido herdadas com os dons de bruxaria obtidos pelo conhecimento das leis, divinas e naturais, escritos nas tábuas sumérias dos mes que Istar/Anat, supostamente, teria roubado depois de ter embriagado seu pai Enki de modo tal e qual ao que Isis usou para roubar o sagrado nome de Rã!
Figura 3: Aracne desenhada em estilo de vaso grego com ajuda da IA.
Ora, o divino nome de Ra / Rã aparece tanto no nome da «aranha» como no da «ronha» podem ter mais relações do que parece.
Há uma ligação surpreendentemente rica entre as múltiplas acepções da palavra “ronha” e o simbolismo da aranha, especialmente no contexto do mito de Aracne. A palavra “ronha” tem raízes no latim vulgar ronĕa, forma possivelmente derivada de arānea — que significa “aranha” ou “teia de aranha”. Tal origem já sugere uma conexão directa entre o aracnídeo e os sentidos figurados da palavra.
Como se relacionam os significados?
Sentido de “ronha” | Relação aranha / Aracne |
Sarna animal | A sarna é causada por ácaros — parentes microscópicos das aranhas. A ideia de algo que se infiltra, que corrói silenciosamente, remete à teia invisível da punição de Aracne. |
Malícia / Astúcia | A aranha é símbolo clássico de astúcia: tece pacientemente, espera, captura. Aracne, ao desafiar Atena, revela essa mesma ousadia e engenho. |
Fingimento / Preguiça | “Estar na ronha” sugere alguém que finge ou evita esforço. A aranha, por seu turno, parece imóvel, mas a sua teia é uma armadilha activa — há uma tensão entre aparência e acção, como no fingimento de submissão que Aracne jamais demonstrou. |
Doença moral / vício | A punição de Aracne — transformada em aranha — pode ser vista como metáfora para o “vício” de desafiar o poder. A teia torna-se prisão, e a aranha, símbolo de isolamento e repetição. |
Aracne encarna a “ronha” em todos os seus matizes: astuta, ao tecer verdades incómodas sobre os deuses; desafiadora, ao não se submeter à autoridade divina; transformada, como se a “ronha” fosse castigo pela sua ousadia.
E se pensarmos em Ovídio como o verdadeiro Aracne — censurado por Augusto — então a “ronha” torna-se também metáfora da arte subversiva: aquela que se infiltra como sarna, tece como aranha, e resiste como fingimento.
É evidente que é bastante improvável que os educadores populares que ajudaram a moldar os múltiplos sentidos da palavra “ronha” tenham lido Ovídio directamente. Mas isso não significa que a ligação entre “ronha” e “aranha” — e por extensão, Aracne — seja mera coincidência.
Segundo o Dicionário Infopédia, “ronha” deriva do latim vulgar ronĕa, que por sua vez é uma alteração de arānea — “aranha”. Essa raiz aparece em várias línguas românicas: Catalão: ronya. Italiano: rogna. Francês antigo: roigne. Português: ronha. Ou seja, mesmo sem ler Ovídio, o povo preservou uma memória linguística da aranha — associando-a a doenças de pele, astúcia, sujidade, vício moral e preguiça. Tudo isso está presente no mito de Aracne, ainda que de forma simbólica. A cultura popular funciona como uma teia: absorve, transforma e transmite ideias sem necessidade de livros. Ovídio pode ter sido lido por poucos, mas os temas que abordou — censura, orgulho, punição divina — ecoaram em provérbios, contos e expressões. A aranha como símbolo de astúcia e castigo está presente em muitas culturas, e a palavra “ronha” carrega essa carga semântica como se fosse uma tapeçaria oral.
Mesmo sem microscópios, o senso comum já associava certos animais a doenças, com base em: Aparência e comportamento: As aranhas são discretas, vivem em cantos escuros e tecem teias — características que evocam ocultação, sujidade e infiltração. Isso casa bem com doenças de pele que “aparecem” sem aviso e se espalham silenciosamente; Analogias visuais: A sarna provoca lesões que podem lembrar teias ou manchas irregulares, reforçando a associação visual; Medo instintivo: Aracnídeos sempre foram vistos com desconfiança. Mesmo sem saber que o Sarcoptes scabiei era o agente da sarna, o povo já intuía que “bichos pequenos” causavam males invisíveis e suspeitava que a aranha seria peçonhenta ao ponto de se acreditar que o herpes labial resultava de mordedura de aranha durante o sono.
A palavra latina arānea (aranha) evoluiu foneticamente em várias línguas românicas para designar tanto o animal quanto doenças de pele:
Língua | Termo derivado | Significado principal |
Latim vulgar | ronĕa | Alteração de arānea |
Italiano | rogna | Sarna, problema, incómodo |
Catalão | ronya | Sarna, sujidade, astúcia |
Francês | roigne | Sarna, doença cutânea |
Português | ronha | Sarna, malícia, preguiça |
A evolução fonética e semântica sugere que a associação entre aranha e doença cutânea é antiga e pan-românica — não fruto de conhecimento científico, mas de observação empírica e analogia simbólica. A aranha representa: Invasão silenciosa: Tal como a sarna, que se instala sem ser vista. Teia enganadora: Como a astúcia ou a malícia — outros sentidos de ronha. Persistência e contágio: A ideia de algo que “pega” e se espalha, como vício moral ou sujidade.
A metáfora da aranha como agente de corrupção — física ou moral — é poderosa e intuitiva, mesmo sem base médico-científica.
Quanto mais antiga é uma palavra, mais ela se revela como um símbolo genérico, multifacetado, e aplicada a uma variedade de seres, objetos e ideias. E a tua observação encaixa perfeitamente na evolução da palavra ronha, que é um verdadeiro caso de “palavra-polvo” linguística.
Palavras muito antigas tendem a acumular significados por três vias principais: Metáfora cultural: Um termo começa com um sentido literal (ex: aranha) e passa a designar comportamentos, doenças, objectos ou até jogos, por analogia. Contaminação semântica: Ao longo dos séculos, palavras vizinhas foneticamente ou semanticamente vão influenciando o significado umas das outras. Uso popular e oralidade: A linguagem falada tende a simplificar e reaproveitar termos antigos para novas situações, criando sentidos figurados.
A pesquisa atual mostra que ronha pode significar: Sarna (doença de pele causada por ácaros). Malícia ou astúcia. Preguiça ou falta de vontade. Fingimento. Sujidade. Jogo infantil. Doença nas salinas. Doença vegetal (como na videira). Ou seja, uma palavra que começou como possível derivação de arānea (aranha) acabou por se tornar um símbolo de infiltração, vício, astúcia e contágio — físico ou moral. A mesma tendência aparece noutras línguas:
Língua | Palavra | Significados acumulados |
Italiano | rogna | Sarna, incómodo, problema, “buscar rogna” |
Catalão | ronya | Sujidade, doença, esperteza |
Francês | roigne | Doença de pele, velhacaria |
Espanhol | roña | Sujidade, sarna, rancor |
Português | ronha | Sarna, manha, preguiça, jogo, sujidade |
A antiguidade da raiz arānea permitiu que ela se tornasse um reservatório semântico, onde várias culturas depositaram os seus medos, vícios e metáforas.
Continuando no mito aconteceu que a suposta competição foi renhida mas a trama de Aracne estava perfeita. Obviamente que estamos perante uma metáfora que mistura velhos conceitos míticos relativos ao poder dos deuses do céu de tecerem as malhas do destino humano e uma visão lendária das rivalidades resultantes da actividade comercial competitiva entre cidades da época clássica, ou seja um pronuncio da crise da indústria têxtil no contexto da globalização moderna!
Mas é sobretudo pelos tecidos e trabalhos das mulheres que Minerva assume importância toda especial, e tem por atributo a roca. (...) Os tecidos constituíam um dos ramos mais importantes da indústria dos atenienses; mas as fábricas da Ásia, célebres em todas as épocas, sobrepujavam em delicadeza as cidades gregas, cujos tecidos menos delicados eram provavelmente mais sólidos. Foi o que deu origem à lenda que nos pinta a rivalidade entre Minerva / Atena e Aracne. [2]
Figura 4: Lekythos, ca. 550 –530 b.c.; Archaic, black-figure Attributed to the Amasis Painter - Woman Weaving.
Sobre a expressão caelestia crimina, traduzida como “invectiva contra os deuses”, um esclarecimento: estamos conscientes de a grande maioria optar por traduzi-la como “adultério”, a nosso ver injustificada tendo em vista não ser essa uma categoria aplicável aos deuses (e mesmo que o fosse não cobriria a totalidade dos casos descritos no bordado da meônia), ou ainda como “celestes crimes”, tradução falsamente neutra a implicar uma condenação oblíqua à reacção de Palas Atena, retratando-a de modo ignominioso. De tais considerações resultou, em nossa tradução, cujo propósito foi o de ser o mais fiel ao espírito do texto, tendo como guia as isotopias, mesmo nos limites de uma certa liberdade gramatical, a opção pelo significado de “acusação”, “delação”, “invectiva”, amplamente registado para o termo crimen, -anis. Tais assertivas não impediriam, porém, a usual tradução do termo se pudesse ser preservado seu emprego como expressão de um juízo ímpio, estabelecido ao nível humano. -- CONFLITO DE BORDADOS: A RESTAURAÇÃO AUGUSTANA E O MITO DE ARACNE NA POESIA DE OVÍDIO de Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras.*
O estilo pedante cai mal a académicos no discurso ex cátedra que deverá ser compreensível, congruente e, no mínimo, neutro mas, neste caso, entende-se mal que o professor Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras tenha assumido para Ovídio um papel de defensor da moralidade tradicional que este poeta historicamente não tinha. Não se sabe exactamente se foi por Ovídio ter posto em causa a santidade do casamento monogâmico decretado pela augusta lex Júlia da criminalização do adultério com a publicação da ars amatoria sete anos antes do seu exílio mas…pelo menos parece ter sido este o pretexto dos que criticavam a imoralidade insolente dos seus escritos que o próprio poeta contesta
"A inveja guloso, explode: meu nome é bem conhecido já:
Será mais assim, se só os meus pés percorrem o caminho que já começaram!
Mas vós estais com pressa demasiada:
Se eu viver vós ficareis mais do que tristes:
muitos poemas, na verdade, já se estão formando em minha mente."[3]
Decididamente Ovídio assemelhava-se mais a Bocage do que ao divino Virgílio pelo que é muito possível que na metamorfose de Arácne o poeta estivesse a auto retratar-se apontando simultaneamente os adultérios divinos em contraponto com o seu próprio com Júlia, a lasciva filha do augusto imperador.
De resto, em finais do século V a.C., depois do auge da filosofia o destino e a veracidade dos mitos começaram a ser postos em causa e iniciou-se uma atitude de pensamento crítica face à veracidade dos mitos e a uma nova concepção da origem das coisas que tinha como prioridade a exclusão do sobrenatural da ordem natural das dessas mesmas coisas. Certos filósofos radicais, como Xenófanes, começaram a rotular os textos dos poetas míticos como blasfémias e imorais porque Homero e Hesíodo atribuíam aos deuses "tudo o que é vergonhoso e escandaloso entre os homens, pois os deuses roubam, matam, cometem adultério, e enganam uns aos outros". Viveiros Cabeceiras ao considerar, contra o senso comum actual e dos eruditos elenistas, a acusação de “adultério”, (…) injustificada tendo em vista não ser essa uma categoria aplicável aos deuses” faz uma petição de princípios porque não era essa a opinião de Hera que fez a vida negra às sua rivais e aos seus enteados já que não podia afrontar o divino soberano dos deuses. De resto, foi sobretudo este critério dos adultérios e deboches sexuais dos deuses pagãos que levou os cristãos a considerarem que o paganismo mais do que falso era imoral e por isso ilegítimo por indignidade congénita. Mas sobretudo, esqueceu que a lei Júlia, ao criminalizar o adultério incriminava também os deuses pelo que a expressão caelestia crimina era uma crítica velada de Ovídio ao puritanismo pré cristão de Octávio César Augusto. Este viria a vingar-se enforcando-o nesta mesma corda!
Na verdade o misterioso carmen et error de que nem Ovídio clarificou na Tristia escrita em sua defesa para tentar livra-se da apagada e vil tristeza no extremo oriental do império na solidão duma vila numa ilha do Mar Negro em frente a Constança pode ter sido precisamente um adultério que a lex Júlia condenava com o exílio e que por ter sido cometido com a filha do imperador não foi a tribunal para evitar o escândalo.
Como tinha na mão a lançadeira, singular lenho do Citoro monte, a fronte da Rival feriu com ela. Aracne não sofreu afronta tanta, e animosa atou laço no pescoço. Já pendente da trave a vê Minerva, e cair não a deixa enternecida, dizendo-lhe: “Enfim vive, ó temerária, mas de modo, que vivas no ar suspensa: E para que em futuro não esperes, a tua prole toda, e tardos netos a mesma pena sintam”. Vai-se; e ao longe com suco de Aconito a banha toda. No mesmo ponto os úmidos cabelos, E da fronte as feições perde a infelice à força do veneno poderoso. De repente a cabeça, e todo o corpo se atenua; dos lados saem-lhe os dedos compridos, e subtis, que em pés se tornam: Toda ela é ventre, donde arroja teias, exercitando Aranha o antigo ofício. -- METAMORFOSES DE OVÍDIO, TRADUZIDAS POR FRANCISCO JOSÉ FREIRE.
Então, reza o mito, a jovem ousou retratar impudentemente algumas das acções menos respeitáveis dos deuses tais como a cena do “rapto de Europa” perpetrado por Zeus, o pai de Atena. Furioso, Atena transformou a jovem numa aranha.
Como facilmente se infere estamos perante um dos primeiros maus exemplos dos julgamentos artísticos e desportivos feitos à força e à medida dos “vencedores à partida”, de acordo com critérios subjectivos preconcebidos nos quais as justificações surgem de forma arbitrária e extemporânea, quase sempre baseadas em preconceitos utilizados de forma hipócrita e pouco convicta.
De qualquer modo manda o bom senso e a prudência que ao juiz não invoques os termos da lei e ao mestre-escola não apontes a ignorância da lição!
Neste caso, a cena do rapto de Zeus já só seria menos respeitável para os racionalistas bem pensantes do classicismo porque nunca causaram rebuço algum ao sentimento comum dos povos antigos uma vez que o rapto sempre foi uma das formas comuns de obter casamentos e uniões de conveniência por amor contra a vontade dos pais ou mesmo perante as dúvidas e indecisões dos próprios! Outra interpretação deste mito, mais rebuscada e culturalista seria aceitar que Atena assume aqui o papel de garante da vontade patriarcal ateniense, ao tentar disciplinar velhos conceitos míticos do matriarcado. Porém, o mito pode conter em si uma verdade mais subtil.
Como se viu antes Ariadne, “a deusa do novelo de linha dourado”, seria uma forma de deusa tecedeira da Aurora que teve também o nome de Europa. Ou seja, Aracne retratava aqui o seu próprio vexame que nunca teria perdoado ao pai de Atena, recalcamento de memória de que esta esquizofrenicamente se defenderia através dum complexo de Electra desviado do desejo de posse do pai para o estatuto de “filhinha do papá”.
A associação entre Ariadne e Aracne não é apenas funcional (ambas lidam com fios), mas simbólica: Ariadne salva Teseu com um novelo — símbolo de orientação, memória e redenção. Aracne desafia Atena com sua tecelagem — símbolo de orgulho, arte e punição. Ambas são mulheres ligadas ao fio como destino. Ariadne guia, Aracne desafia. Uma oferece salvação, a outra sofre transformação. A teia de Aracne é o espelho da linha de Ariadne — ambas são figuras liminares, entre o humano e o divino.
Ver: AURORA & EUROPA (***)
Se Aracne fosse uma variante de Ariadne então apenas estaria a revelar de forma simbólica as suas núpcias atribuladas com o pai da deusa facto que nunca poderia provocar a ira de Atena porque ela própria teria sido Ariadne. Sendo assim, o mistério deste mito fica explicado se aceitarmos que em parte pode ter um fundo lendário relacionado com uma rivalidade entre cidades que tinham Aracne e Atena como padroeiras sem que fossem capazes de identificarem ambas as deidades com a mesma origem mítica. Assim, sendo impossível ultrapassar o equívoco que resultava da ambiguidade do mito e sendo quase certo que se tratou dum facto histórico no qual Atena teve que encarar a humilhação de os tecidos da cidade rival serem de melhor qualidade a solução mítica teria que passar pela estratégia de política religiosa que dava invariavelmente a vitória ao deus moralmente mais meritório. Ora, como em política o que parece é, surtia sempre efeito denegrir o vencedor com o labéu infamante da blasfémia bastando para tal o recurso a técnicas de pitonisa, à pequena mentira caluniosa e/ou à artimanha de merceeiro. Aproveitando o mal-estar provocado pelo brilho estonteante do génio o poderoso vencido pode ainda “deitar terra para os olhos” do júri declarando que o deslumbramento em que este se encontra não passa de mal-intencionada provocação no plano dos preconceitos vigentes. Quando desqualificado pelo arbítrio da vontade de estado e do poder político mesmo o que vence com nobreza acaba vilipendiado e vencido.
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