DELÍRIO NATALISTA OU SOLUÇÃO FINAL — REVISITADO
“Só os mortos conhecem o fim da guerra.” — Platão
O tempo passou, e com ele, a minha própria consciência ética foi sendo moldada pelas tragédias silenciosas que se acumulam nos bastidores da modernidade. Se outrora me insurgi contra os moralismos dogmáticos que tentavam resolver o aborto com fórmulas teológicas, hoje reconheço que o “abortismo sistemático” — institucionalizado, banalizado, quase automatizado — se tornou ele próprio uma nova forma de dogma, mas agora travestido de progresso.
Não me tornei um moralista. Continuo a desconfiar dos que usam Deus como argumento jurídico e dos que confundem fé com lei. Mas também já não consigo ignorar o sofrimento invisível que se esconde por trás da estatística fria dos abortos legais. A vida humana, mesmo em potência, merece mais do que ser tratada como efeito colateral da liberdade sexual ou como subproduto descartável da biotecnologia.
Este ensaio, que nasceu como um grito contra a hipocrisia natalista, renasce agora como uma meditação sobre o valor da vida — não como dogma, mas como responsabilidade. Se a autonomia da mulher é sagrada, também o é a dignidade da vida que nela germina. E talvez o verdadeiro espírito cristão não esteja nem na condenação nem na permissividade, mas na compaixão lúcida que reconhece o drama humano em toda a sua complexidade.
(a propósito do artigo MORTE EM CADEIA da página de OPINIÃO do semanário EXPRESSO de 4 de Janeiro de 1987)
DOS LIMITES TEORÉTICOS DO TEISMO
“A solução da problema do aborto terá um ou outro desfecho conforme se tiver ou não uma visão cristã da vida, encarada esta como dom de Deus e que só Ele pode tirar.”
Com esta introdução de balde se pretendeu, mais uma vez, resolver de forma teológica uma dos mais graves e difíceis questões de bioética dos nossos tempos. Só que, desde que deixou de haver povo eleito, invocar o nome de Deus em assuntos de política social é invocá-Lo em vão e, neste caso, formalmente mal porque de maneira incompleta pois que ao autor lhe faltou dar conta da premissa inversa, implícita no dom divino da vida, e então a mesma lógica do artigo deveria ser aplicada, mutatis mutandis, para reprovar os esforços dos que tudo têm feito para diminuir as taxas de mortalidade infantil, o que seria inaudito e inaudível! Dito de outro modo, se é por serem dom divino que os assuntos da vida e da morte são tabus intocáveis então a lógica do anátema seria de aplicar tanto aos que promovem a morte como aos que promovem a vida porque não faria sentido que a divindade dispensasse ajuda para tirar a vida ao mesmo tempo que lhe seria agradável tal ajuda quando se tratasse de a promover por meios médicos ou de mera beneficência! Claro que o que está em causa é o valor positivo da vida em si mesma, mas continuaria por entender no plano metafísico que a divindade reservasse para si o lado negativo quando a ela nada se pode retirar ou aumentar deixando aos mortais a faceta mais lisonjeira. Sendo porém, mais fácil aos mortais lidar com assuntos de morte (enquanto à divindade nada custa o milagre da vida) pode inferir-se que nesta partilha de competência trágicas aos homens foi reservada a tarefa mais exigente! Em conclusão a excelência dos valores morais procede da lógica sacrificial pelo seu poder de prova e desafio à transcendência!
Ora bem, a esta competição espiritual correspondeu antropologicamente o ideal heróico dos trofeus de guerra que nas tribos primitivas começaram por ser os escalpes ou os despojos dos inimigos, depois foram sublimados nos louros homéricos e nos tempos hodiernos, em todas as formas de emulação e de prestígio. Assim sendo a moral foi sempre uma questão de nobreza de sangue ou de grandeza de alma! Do seu conteúdo sacrificial aproveitou a humanidade o contributo de todas as forma de heroísmo para a defesa e progresso da cultura e da civilização e os que são tomados pela loucura divina da transcendência física ou moral é reservado o triunfo do respeito e admiração pública de que, todos os homens bem sucedidos, se tornam psicologicamente dependentes. Pois bem, o destino dos verdadeiros heróis fica marcado pela forma como superam o passar inevitável dos tempos gloriosos: Quando Deus os fere com a fraqueza humana ou morrem com nobreza de alma ou vendem a alma ao diabo sucumbindo ao embuste e à corrupção! A mais comum das corrupções morais é a hipocrisia de que a orgulhosa ostentação da virtude constitui o mais aviltante dos defeitos, como Cristo o notou. Evidentemente que a esta moral heróica de tribos de caçadores se veio a juntar, com a passagem nos alvores da História ao sedentarismo agrár-pastoril, a moral gregária da compaixão altruísta. Quando a morte deixou de ser um factor de equilíbrio na ecologia social a humanidade pode enfim deixar de votar aos deuses sacrifícios humanos e Yhavé revelou finalmente a sua face de misericordiosa sabedoria proibindo o sacrifício dos vencidos porque seria altruísmo esclarecido comutar-lhes a pena em trabalhos forçados na agricultura e assim nasceu a escravidão! Seria inaceitável não poder manter o direito a sacrificar os vencidos e continuar a permitir-se a morte do semelhante e homem livre. Porém, aos indivíduos só a vida é dada de graça, pelo que o direito a mantê-la tem sido sempre o resultado de uma trágica luta à qual o sujeito tem tido que sacrificar parte do seu direito à liberdade biológica. Neste negócio de vida ou de morte com as forças divinas do destino a humanidade tem ganho em excelência moral o que tem perdido o indivíduo em direitos subjectivos. Em conclusa, se o cinismo não explica a moral o realismo histórico compreende muito bem as vicissitudes dos caprichos divinos! Claro que existem cinismos modernos que pretendem explicar o altruísmo como variante estratégica do egoísmo dos genes mas pouco se adianta, na vã busca das causas primeiras da subjectividade, em frívola imaginação porque reportar para o AND, que não tem a universalidade ontológica necessária e logo a dignidade metafísica suficiente para ser causa primeira da razão moral (que amanhã outro cínicos irão buscar mais aquém, na realidade subatómica por ex.) é repetir o paradoxo do ovo e da galinha porque a questão permanecerá a mesma que tem sido desde Aristóteles ou seja, a aceitação ou não da remissão ad infinitum da sucessão da causalidade justificativa da realidade.
Por serem absurdas ou inconcludentes as lógicas metafísicas aplicadas a questões reais é que os estados laicos modernos deixaram de ser confessionais e dispensam os cidadão de acreditarem ou não em Deus, assim como lhes dão a liberdade de acreditarem no Deus do seu coração e não necessariamente no Deus dos teólogos cristão ou no do credo católico.
Assim sendo, a questão que parecia simples colocada no plano da teologia começa a complicar-se se reportada para o plano filosófico da teorética onde a verdade dogmática não foi até hoje claramente preferida à dúvida metódica do realismo presente no mais simples dos múltiplos sensos dos comuns dos mortais.
“Dêem-lhe as voltas que lhe derem, neste como nos demais problemas morais, virá sempre ao de cima a célebre constatação de Dostoiewsky. «Se Deus não existe tudo é permitido...» Havendo, quando muito, uma contemporização momentânea de respeito pelos outros, nesta luta hobbesiana de todos contra todos, como forma de garantir a própria segurança e nada mais.”
Em "Os Irmãos Karamazov", a personagem Ivan Karamazov argumenta que, sem Deus, a noção de certo e errado se torna relativa, e, portanto, tudo se torna permitido, pois não há uma lei moral universal a seguir. No entanto, é importante notar que a interpretação dessa frase é complexa e pode variar. Alguns argumentam que a falta de um fundamento moral objectivo não implica necessariamente a permissividade total, e que existem outras bases para a moralidade, como a razão, a experiência ou a própria natureza e condição humanas.
Reportar as questões morais exclusivamente à esfera teológica, onde as provas da existência de Deus são mais do que falácias, levar-nos-ia a entregar as questões sociais, daí decorrentes, à irracionalidade das questões meramente de fé. Ora, não sendo possível demonstrar a não existência de Deus, o silogismo dostoiefkyano perde o valor de constatação que nunca teve. S. Paulo preferiu propor que “tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém; tudo é permitido mas nem tudo é construtivo” verificando-se assim que nem sequer é necessário ser ateu para se chegar à conclusão de que Deus não tolhe a liberdade moral a ninguém. O mal é dos que, tendo do cristianismo apenas a visão cristã, perderam a ideia de que “foi para a liberdade que Cristo nos libertou!”. (Gal 5; 1). Com um pouco mais de senso comum lembrar-nos-íamos que, não bastando temer a Deus para se ser justo, muitos foram os crimes cometidos em nome de Deus ao longo da história mesmo já na tão humaníssima época cristã, bastando para o documentar referir as cruzadas dos inocentes, os autos de fé da inquisição e todas as grandes e pequenas cumplicidade do poder eclesiástico com as iniquidades do poder temporal de que a ambiguidade do Vaticano para com os fascismos europeus (e até mesmo com o nazismo que tantos rebuços farisaicos provoca ao autor) são apenas a mais recente e mais pálida das expressões. Mesmo que nos reportássemos para uma teologia universal ficaríamos sem saber a que deus, presente ou passado, nos deveríamos referir quando falamos do respeito absoluto pela vida. Ao Deus de todos os exércitos, ao deus cartaginês amante do sacrifício de primogénitos, aos deuses que abençoavam a rocha Trapeia do alto da qual os romanos lançavam as suas crianças deficientes ou ao Deus de todas as coisas, do bem e do mal de que os homens apenas têm reclamado a melhor face? É fácil a desculpa da barbárie a quem prossegue em discursos dogmáticos por onde se escondem desculpas para novas e futuras barbáries!
Que Deus inspira as seitas apocalípticas dos suicídios colectivos ou os psicopatas fanáticos que cometem assassínios em séria ou em massa com a bíblia na mão?
Será apenas porque acreditamos neste ou naquele deus que somos seres com elevados padrões de exigência moral ou porque a moral mais do que um código de condutas concretas ditadas por um deus abstracto corresponde a uma sensibilidade cultural que cada um de nós adquire ao tornar-se pessoa ou seja, ao adquirir a interiorização das regras de civilidade (socialização) sem as quais não é possível a vida social? Encontrar nestes factos elementares da sociologia um pretexto para polémicas de cinismo hobbesiano(?) seria regredir ao nível das polémicas darwinistas do fim de século ignorando o quanto as ciências ecológicas modernas fizeram para compreendermos a lógica implícita nos princípios naturais intuitivos da luta pela vida a que a humana condição a todos nos sujeita! É pura má fé falar nestes termos porque, as coisas sendo o que são e não o que a nossa subjectividade exaltada teme que venham a ser quando reportadas à esfera das ciências experimentais, única onde é possível alguma segurança doutrinária, continuarão a ter o valor que sabiamente lhes quisermos dar! É evidente, para a maioria dos pensadores actuais, que os paradigmas éticos e religiosos não passam de metáforas mais ou menos infantis que acabam por ser, por isso mesmo, tão míticas como as dos tempos antigos, de verdades muito mais complexas que só o método cientifico permite esclarecer sem o obscurantismo dos discursos dogmáticos dos moralista de profissão, ou de fé, idealista ou materialista, pois sejam eles quais forem os resultados são sempre os da intolerância fundamentalista e os da impiedade insensata.
Se Deus fala ou não aos homens é questão que qualquer metafísica pós Kantiana tem por impossível de saber ao certo mas, o mais sábio seria aceitar que a voz da sabedoria é a voz de Deus e cada sujeito recebe do Ser a sabedoria que lhe é adequada com o grau de liberdade de decisão e de acção que o define como sujeito autónomo. Ora é precisamente a autonomia subjectiva no plano das interacções vitais que define os seres vivos. O respeito por esta autonomia só pode ter como corolário ético o respeito pela verdade da vida que é de facto o axioma central da bioética moderna. Porém, o respeito pela verdade não pode implicar o absurdo do suicídio metafísico!
Quem sobreviria a um mandamento genocida como “não matarás” todo e qualquer ser vivo? Uma existência que aceitasse à letra esta ética paralítica do “primum non noscere” em toda e qualquer circunstância redundaria num estatismo nirvânico pós mortem! Acreditar consequentemente em normas tão fanáticas e dogmáticas seria ser mais papista do que o Papa que no decálogo nunca leu mais do que o genérico não matarás o teu semelhante na acepção comum daquele a quem se deve amar como a si próprio. Significa isto que se nos mantivermos sabiamente no paradigma cristão teremos que reflectir no que entendemos por semelhante antes de levantar anátemas contra as mulheres que abortam e na parábola da pecadora para entender o espírito de compaixão daqueles que as defendem! Significa também que o encarar a vida, como dom de Deus corresponde a aceitar o mistério de que a vida nasce necessariamente da vida por intermédio do amor, seja pelo amor reprodutivo, seja pelo sacrifício da vida de que a vida se alimenta ao longo da cadeia alimentar!
METAMORFOSES DE DEUS
Bom seria que os homens de leis se decidirem começar a analisar as questões criminais duma forma mais científica e perdessem um pouco mais do seu pendor moralista. Para além das leis do estado de necessidade alimentar a morte entre os seres vivos da mesma espécie (semelhantes) é excepcional no reino animal e o homicídio doloso uma aberração exclusiva da espécie humana. Pondo de lado a especulação escandalosa de supor por absurdo que os animais sejam por isso mais tementes a Deus a conclusão mais unânime entre os antropólogos é a de que o homicídio aparece na fase crítica da aquisição da racionalidade como erupção psicopatológica induzida pela repressão dos instintos (da libido, da subjectividade animal, como se queira!) sem a qual a hominização não seria possível. Porque a vingança é a forma prévia do castigo divino implícita na justeza do princípio universal da acção e reacção. Não sendo possível nem aceitável entender que o crime compense e possa ficar sem castigo porque o desequilíbrio de vontades entre sujeitos em confronto tornaria insuportável qualquer tipo de vida social, se o homicídio não for entendido como psicopatológico nem como loucura sagrada a vingança surge inevitável. Ora, Moisés teve a lucidez de reparar que o circulo infernal da vingança de sangue do direito privado (narrado à saciedade na história patriarcal do Antigo Testamento) se tornava num flagelo social inconsolável num povo em fase crítica de gestação e passagem pelo deserto pelo que só a vingança abstracta de Deus a poderia refrear. Assim sendo a lei mosaica pouco mais fez do que propor aos homens o que os animais acatam naturalmente, com a vantagem ideológica de ter contribuído para a criação de uma casta de levítica doutores sagrados da lei responsáveis pela prevenção moral e pela repressão penal, no seio da qual surgiriam mais tarde os juizes, revelando-se assim o embrião institucional do futuro estado de Israel. Nestes tempos conturbado, primitivos e difíceis o Deus de Israel não poderia senão ter sido representado à imagem da alma de Moisés: dura, colérica, zelosa, violenta e paternalista!
De resto, Deus revela-se de modos diferentes com a evolução dos tempos pelo que é blasfemo pensar que alguém possa ser dono e senhor das suas ordens ou que estas possam ser definitivas. O Deus cristão já não é o Eloim dos sacrifícios de animais que laçava vingativo sobre os que O não escutassem maldições bárbaras tais que “a mulher mais sensível (…) olhará hostilmente (…) os meninos de quem é mãe, porque desprovida de tudo, ela os devorará ocultamente, no meio da miséria e da angustia” (DT 28; 56, 57) mas o Cristo da indignação pelos doutores da lei que “atam fardos pesados difíceis de transportar e põem-nos aos ombros dos homens, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar” (Mat 23; 4). O Deus de Cristo é o Deus do amor e do perdão. O Deus que se preocupa sobretudo com exigências de Vida eterna e deixas as preocupações da vida terrena para os que se arriscam a perder uma e outra. É assim natural esperar que tenha sido sempre tarefa difícil trazer o espírito cristão para a esfera jurídica dos assuntos temporais de onde a questão do aborto só poderia ser retirada por pura má fé. Já Paulo de Tarso escrevia na carta aos Gálatas (3; 11): É evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus porque «o justo viverá pela fé». Ora a lei não depende da fé…E, no entanto, dois milénios depois ainda aparecem crentes confusos a pretenderem resolver questões políticas com soluções de fé!
NATALISMO DE MÁ FÉ
E a prova de que existe má fé no presente discurso tradicionalista sobre as questões do aborto está precisamente no estilo argumentativo típico dos raciocínios ad terrorem que Aristóteles deplorava!
Dizer que
“O aborto é também uma questão de sensibilidade”
...como se poderia dizer também que era uma questão de boa educação e fino gosto, de cultura e bom senso, é pouco mais do que um lugar comum. O que raramente se diz é que deve acima de tudo ser uma questão de inteligência e hombridade!. Quiçá pouco mais do que isto será sobretudo se nos colocarmos em sintonia com a conotação que a filosofia kantiana atribui ao termo sensibilidade. O sentido comum do termo permite também inferir que ser radicalmente contra o aborto pode ser uma questão de hipersensibilidade mórbida! De gustibus et coloribus non disputatur e uma ética limitada à sensibilidade não passa de um embrião de pensamento, contingente e enganador! Os crimes de colarinho branco, de que o autor falará adiante, assim como todas as formas de hipocrisia são sempre o produto duma educação excessivamente boa na arte da salvaguarda das aparências.
Quantos, à margem de qualquer ideia religiosa, não sentem como barbárie, como violência inadmissível, a liquidação progressiva, fria, de uma vida humana?
Claro que respeitamos os que sinceramente se condoem com as mortes violentas sejam elas de que natureza forem e até mesmo com as mortes de qualquer ser vivo sobretudo quando em risco de extinção (os verdes ecologistas indignam-se a tal ponto que chegam a cometer indignidades!) como também lamentamos as flores colhidas para murcharem antes do tempo, o fim dos dias felizes e a deterioração das coisas úteis e agradáveis para não ir até ao paroxismo lamechas de chorar com o devir da existência universal! Quantos insensatos não desacreditaram da bondade divina perante a morte dos inocentes?
“Só este respeito absoluto pela vida nos permite dizer que nenhuma das situações extremas que vulgarmente se invocam pode justificar o aborto.
Não é possível justificar o injustificável no plano dos princípios! O erro reside na loucura do respeito absoluto por assuntos deste mundo material, finito e relativo, pecando contra o espírito! Mas, não será também verdade que as questões de princípio não passam disso mesmo, critérios abstractos que de absoluto apenas têm o facto de o serem no pensamento dos que assim os pensam e na vontade dos que consensualmente aceitam que, no domínio da finitude da existência, são necessários critérios universais de entendimento para alcançar a verdade? Só o Ser é em absoluto aquilo que é. Os juízos de valor sendo diversos dos de realidade terão que ser relativos pelo menos em relação à realidade que valorizam.
Uma ética tabu absolutamente intocável é tão mítica como a crença na deusa da verdade!
Quem poderia sobreviver se levasse à letra o respeito pela vida incluindo legitimamente neste âmbito o respeito por todos o seres vivos? É também mais do que evidente que a uma hipersensibilidade idealista e neurótica se contrapõe a sensatez do realismo duma dura nua e crua condição humana tão social quanto animal, tão racional quanto mortal! Não é fácil pregar a estômagos vazios porque a razão visceral só não é realista quando está satisfeita!
ABORTO E PURITANISMO
Sejamos coerentes -- pode «justifica-lo» (o aborto) tanto quanto se justificaria a morte da criança deficiente ou fruto de uma violação...”
Mas, que tipo de coerência é esta em o termo «justifica-lo» é utilizado sem que se saiba se no sentido religioso, se no lógico, se no jurídico? É que todos sabemos o quanto de injustificável a jurisprudência permite justificar quando nos enredamos em de jogos de palavras!
Deixemo-nos de hipocrisias, não invoquemos razões de verificação remota ou que a ciência médica pode ultrapassar: o aborto é hoje o complemento imprescindível da pornografia e da sexualidade mais desenfreada; É a válvula de escape que permite resolver os embaraços que a imprevidência propiciou.
O terror já vai no medo neurótico da sexualidade de que a pornografia é mero pretexto para o ridículo aviltante quando de facto constitui a vertente cómica que toda a sexualidade sadia deveria conter! Porque será que os moralistas têm sempre tanto medo do sexo? Que o investiguem os psicanalistas porque quanto a mim o sentimento que me resta é já tão somente o da compaixão! Não será óbvio que o sexo pelo sexo possa viciar como a heroína e que o mal de todas as sociedades tenha sido e de terem sido levadas a separarem o prazer sexual da sua função não meramente reprodutora mas sobretudo de laços afectivos, enfim de amor e de vida! Porém, este facto não nos deve fazer cair na asneira de deitar fora a criança com a água suja que é o que os moralistas têm conseguido. Puritanos e devassos são o verso e o reverso da mesma medalha duma existência social excessivamente contrastada, convulsiva e insegura! Deixem as pessoas viver em paz e de forma sadia a sua vida e a sua sexualidade e haverá mais paz e felicidade neste mundo!
Depois vêm à colação os progressistas (e agora sem dó nem piedade pois ninguém lhes mandou andarem metidos em aventuras doutrinárias e moralistas de sentido contrario!). Afinal quem é que está a ser hipócrita nesta questão? Obviamente todos os moralistas encartados, respondo eu! Os de ontem pelos crimes que permitiram em nome de Deus e das razões de estado e os de amanhã pelos atropelos que irão cometer à liberdade de pensamento e sobretudo ao nosso íntimo direito de escolher pecar ou não!
“Quando as mães ou os educadores ditos progressistas incentivam a adolescência a uma prática sexual, quando de todos os modos se multiplicam as situações de rico, obviamente que os problemas aparecerão”. A afirmação é arriscada sem o mínimo de provas mas se por progressistas se está a falar em países socialistas é bom lembrar a política de juventude, sexualmente repressiva, do maoismo e que na URSS os adeptos da revolução sexual só tiverem delírios libertário nos primórdios do leninismo razão pela qual Estaline os eliminou da história do materialismo! Quanto a mães que incentivam a sexualidade…enfim, sejamos intelectualmente adultos e honestos! Por um lado, num fanatismo hiper natalista, reclama-se o direito absoluto à vida para os todo e qualquer feto e depois acaba-se na contenção natalista deixando os adolescentes férteis à margem da suprema obrigação reprodutora? Em que ficamos? Qual é a lógica moral do autor?
Por amor de Deus, misturar as questões bio-éticas com as da legalização do aborto e tudo isto com o nazismo é descaramento o mais exemplar dos raciocínio ad terrorem! Haja decoro, que para demagogia fácil não haveria melhor demonstração! Desconhecerá o autor as grandes e pequenas cumplicidades da direita conservadora, que o seu raciocínio acolhe e encobre, com o nazismo? Como homem de leis deveria o autor começar por separar o que começa por ser apenas referencial ético geral do que deve corresponder a um consenso socio-cultural concreto e a partir do qual deve ser construído o normativo legal que deverá enquadrar a questão do aborto.
TERRORISMO ROMÂNTICO
“Com a mesma sem-cerimónia com que se apartam leitões inviáveis, dita-se a sentença de morte da criança mal-formada”.
Quem está a ser insultado? Os abortadores clandestinos esmagadoramente impunes ou os tratadores de leitões? Ao senso comum parece que os leitões inviáveis estão fora do conceito do respeito absoluto pela vida mas, com que critérios quando se tem dúvidas na fronteira que marque a diferença entre o humano e o não-humano?”
A diferença que vai entre liquidar um ser humano aquém ou além das paredes do ventre materno deve ser igual a que medeia entre alvejar um homem aquém ou além de um reposteiro. Se tudo fosse assim tão simples e pensado de forma tão reducionista não haveria lugar à complexidade das ciências jurídicas nem lugar a delicadezas nas decisões dos tribunais! Claro que matar é matar mas nem todas as mortes provocadas são crimes da mesma gravidade e natureza. Se até Yhavé parece revelar compaixão pelo infanticídio canibal em estado de extrema necessidade porque se há-de esquecer o limite à proibição absoluta de matar em legítima defesa. Se admitimos que, no plano moral e legal, a legitima defesa permite o direito de matar infere-se que o dever de não matar não é assim tão absoluto como se pretende. Ora, o estado de necessidade e de força maior pode ser encarado sem grande escândalo intelectual como variante da legítima defesa.
E os médicos que valentemente se ufanam em liquidar fetos deficientes, longe de promoverem a vida --- como o juramento de Hipócrates lhes impõe-- tomar-se-ão sentenciadores dos inocentes inviáveis, quais «Mengeles» dos tempos actuais.
Vistas as coisas neste prisma até parece ser assim mas nós médicos já estamos habituados a ter a missão ingrata de fazer o que tem que ser feito quando mais ninguém tem a coragem de o fazer como seja: retalhar cadáveres violando o respeito devido aos mortos; atentar contra a privacidade de virgens supostamente violadas em exames genitais constrangedores e, duma maneira geral, atentar contra a integridade física de todos os que violentamos cirúrgica ou medicamente. Sejamos sérios, mas se colocamos as questões a este nível é fácil de ver que se está a fazer demagogia. As leges artis poderiam perfeitamente incluir o aborto se este fosse encarado como clandestinamente tem sido sempre e não como a morte dum ser humano vivo.
A vida humana, tanto no sentido comum como no legal, sempre começou com o nascimento e não com a fecundação. De facto os mistérios da vida não são intuitivos e o início da sua percepção reporta-se ao início das civilizações agro-pastoris e a seu respeito ainda Aristóteles dizia muitas asneiras. Foram as ciências médicas que levantaram a questão da existência dum processo progressivo que vai da fecundação ao nascimento com os conhecimentos da embriologia mas, daí a concluir-se que um embrião e um feto sejam iguais a um nado vivo, seria precipitação ou terrorismo intelectual. Ora é aqui que todos os equívocos da questão do aborto começaram. Se, como se disse atrás, a pedra da bioética é a verdade da vida e a tradição religiosa mais sábia só tem imposto as semelhanças de amor é fácil de concluir que nos devemos entender sobre o conceito de vida semelhante à nossa.
A MULHER NO CERNE DA SERIEDADE DA QUESTÃO DO ABORTO
Ora bem, o princípio da autonomia da pessoa jurídica é aqui mais do que pertinente. Tem o feto a mesma autonomia do nado vivo? No sentido jurídico não tem, desde logo porque nem o nado vivo tem plena autonomia jurídica antes da maioridade, e depois porque se lhe exige a condição de ter que provar viabilidade nascendo vivo. No sentido comum é a ciência médica que separa os fetos viáveis dos inviáveis no sentido da sua capacidade para sobrevirem fora do útero seja em uns casos exclusivamente pelos seus próprios meios biológicos, noutros por meios técnicos artificiais. Assim sendo, um ser sem autonomia biológica natural não pode ser semelhante a um que a tenha efectivamente como é o caso do nado vivo.
Se aceitarmos a formula politicamente correcta de que o aborto médico corresponde a um parto provocado e não a um acto homicida resta apenas saber da legitimidade para provocar o parto a um feto que se sabe à partida ser inviável fora do útero materno. De facto o cerne da questão colocada na sua expressão mais sensata é este e apenas este.
Então, retirada a questão do campo do homicídio onde efectivamente o aborto nunca esteve claramente, visto ter correspondido sempre a uma figura legal própria quanto muito aparentado a homicídio (mas de menor gravidade --- o aborto nunca foi, parece-me; uma subespécie de homicídio qualificado), fica apenas a questão penal da perda do direito à oportunidade de nascer (neste caso objectiva e não meramente teórica uma vez que é pressuposta gravidez verificada).Ora, este é de facto o único e essencial direito jurídico de que os fetos necessitarão!
Então, a questão que se levanta de seguida é apenas esta: Deve o estado ter uma ética tal que lhe imponha a obrigação de instituir como direito absoluto dos fetos (humanos é claro, recusamos agora e aqui equívocos panteístas) o direito de nascer. Sabendo que os direitos ou são tidos como naturais ou se conquistam, histórica e socialmente, é obvio que seria um ousado precedente para o ordenamento jurídico conceder aos fetos direitos que, não podendo obviamente conquistar por si, não tenham sido sempre sido considerados como de aquisição natural. Ora, é evidente que o nascimento nunca foi um dado adquirido, muito menos para fetos inviáveis fora do útero, que além de Deus ou da sorte necessitam das mães para virem a nascer. O que repugnará a mentes tradicionalistas é aceitar esta dependência que o feto tem do útero materno a tal ponto decisiva que torna a maternidade como um dom quase exclusivamente no feminino! Ora uma coisa que espanta no artigo em comentário é a ausência confrangedora da mulher nos destinos metafísicos do aborto!
Se até o decálogo considera a morte dolosa dos próprios escravos como um crime menor do que o homicídio (por considerar o servo de menor autonomia?) e punha acima do homicídio a obrigação de respeitar pai e mãe porque razão moral se há-de ter no sec. XX, à beira do abismo da explosão demográfica, já superpoluido e à mingua de agua pura, uma sensibilidade moral de tal modo exigentemente natalista que retire à mãe (e/ou aos pais) o poder de ter uma palavra a dizer sobre a aceitação da gravidez impondo à mulher o fardo absoluto de por o seu corpo à disposição de todo e qualquer feto, fruto de qualquer fecundação?
APOLOGIA DEMAGÓGICA DA NEGATIVIDADE
Não basta exclamar com voz trémula: Com pensares assim, génios «mal-formados» como uma Hellen Keller ou um Stephen Hawking teriam sido implacavelmente condenados à morte no diagnóstico pré-natal porque seria demagogia fácil!
As excepções confirmam a regra e não acredito que o autor se atrevesse a ter filhos mongolóides na esperança de algum deles vir a ser um génio. Pelo contrário arriscaria pela minha experiência profissional a afirmar que levaria a tribunal o médico que tivesse negligenciado o primeiro diagnóstico pré-natal atempado que se impunha. Argumentar-se-á que Deus castiga o orgulho dos santos fazendo-os sucumbir à fraqueza humana! Também, mas é um facto que se não tivesse sido o poder da confissão o fardo moral do catolicismo teria sido impossível de suportai durante vinte séculos! Uma moral baseada na obediência cega a princípios impossíveis de suportar não é compatível com homens livres e esclarecidos daí que tenha sérias dúvidas de que o catolicismo tenha seguido a filosofia paulista que julgo ter sido retomada pelos luteranos. Falar em espírito cristão quando está em causa a dogmática católica é assim abusivo mau hábito hegemónico de quem ainda não deixou de pensar em Roma como o centro do mundo!
Quando o autor termina com a conclusão panteísta...
“Se a vida humana se iniciou com a fecundação (e o que releva é essa chama sagrada que, como a fagulha, apenas mudará para crescer), haverá alguma fronteira que marque a diferença entre o humano e o não-humano?”
...fico aterrado com a perspectiva de, num tribunal a que o autor presidisse, vir a ser julgado como um cão ou a encontrar um cão a ser julgado pelo Código Penal! Evidentemente que isto é um raciocínio de provocação pelo absurdo, salvo o devido respeito não sei se à espécie canina se ao autor que nesta argumentação assim andou tão desavisado. O que pretendo é fazer ver que o que está em questão é precisamente o contrário das conclusões do autor. Se não houvessem fronteiras entre o que é e não é humano haveria que inventa-las pois de outro modo a moral não faria sentido e muito menos haveria lugar para o direito! O respeito pela vida em geral tem limites éticos intuitivos pois de outro modo a espécie humana não teria sobrevivido até hoje, nem aos seus inimigo de outras espécies, nem mesmo, no plano do humano, aos que a sociedade lhe tem imposto. Quanto às funções meramente técnicoprofissionais das artes médicas não faria sentido o diagnóstico pré-natal se tanto os indivíduos quanto a sociedade tivessem de continuar a ficar indefesas por meros tabus morais perante a fatalidade das deficiências genéticas. Ora a verdade é que mesmo com os casos excepcionalíssimos de uma Hellen Keller ou um Stephen Hawking, a fatalidade da deficiência infantil não deixará nunca de ser humanamente inaceitável. Não será necessário ler Nitsche para sentir que, uma moral que não se limite a considerar a deficiência como uma fatalidade contra a qual há que lutar com dignidade, será uma ética de vencidos. Há que pensar nos limites duma sã compaixão sobretudo quando as alterações genéticas envolvem de tal modo o cariótipo que permitem dúvidas legítimas sobre a real natureza dos fetos deficientes. Se o cariótipo do feto tiver sido, por acidente, alterado de tal modo que, o seu portador se torne em alguém mais próximo dum primata do que dum homem, será legitimo sequer falar em feto humano? Valerá a mera viabilidade pós natal ser tida como critério de mutação genética darwiana quando são conhecidas as discriminações positivas que a civilização moderna introduz no meio natural da espécie humana? Será de pensar que alguns deficientes profundos incapazes de assumir os seus mais elementares direitos sejam efectivamente portadores de uma personalidade jurídica autónoma? Quanto a mim é intuitivamente mera estultice defender o direito absoluto de nascer do que é à partida considerado como universalmente negativo e quanto a isso sejamos intelectualmente honestos, porque há casos e casos. Pode parecer, por preconceito social ou falta de experiência sobre as voltas que a vida dá, que um feto possa estar de antemão condenado a ser um pobre infeliz mas, por estes motivos, só defenderão o aborto almas piedosas desavisadas e distraídas com o chá de canastra ou mentes nazis!
ILICITUDE MORAL OU JURÍDICA
Fora de situações caricatas e extremas é evidente que o autor delira quando afirma:
“Será possível compreender por que é licito matar ás 24 semanas e já não às 24 semanas e um dia, antes do parto mas já não depois dele --- quando, de essencial, nada mudou?
Se a ilicitude de matar é assim tão absoluta e universal e tão intuitiva na sua aceitação porque razão existem forças armadas e pena de morte em tantas sociedades? Aqui é obvia a confusão falaciosa entre a impropriamente chamada ilicitude moral e a ilicitude no sentido jurídico e no corrente do termo. E depois costuma haver eufemismos para as soluções incómodas pelo que seria mais elegante utilizar a expressão aborto provocado ou a politicamente correcta interrupção voluntária da gravidez e não falar, provocatoriamente, em licitude de matar antes do parto.
Se é ou não compreensível o aborto provocado antes ou depois das 24 semanas é uma questão para ser reflectida à luz de critérios médico-legais claros porque à partida e em geral é sempre difícil compreender muitas das balizas temporais taxativas de que os homens do direito tanto gostam e a nós cidadãos tanto incómodos nos acarretam, sobretudo quando se trata de prazos legais. Ou então, porque razão se é inimputável até aos 7 anos para certas questões civis, aos 14 para certas questões penais e aos 16 para outras.(não sendo jurista posso-me ter enganado nos termos mas julgo que não no sentido do exemplo)
O ABORTO COMO OPÇÃO POLÍTICA
A questão do aborto terá desfechos diferentes conforme as respostas que a sociedade der a questões claras com sejam:
1º Tem ou não os fetos direito absoluto à expectativa de nascer? Saídos de há pouco de civilizações rurais onde a fertilidade era tida como fonte de poder patrimonial pela elevada mortalidade infantil que lhe andava associada não é fácil responder desapaixonadamente a esta questão. Daí que pareça bárbaro não responder afirmativamente quando a verdade é que a barbárie futura se acoita na explosão demográfica que é consequência de mentalidades natalistas anacrónicas. O orgulho da civilização moderna nos progressos da medicina na baixa da mortalidade, sobretudo infantil, tem como corolário a catástrofe da explosão demográfica se não for ecológica e lucidamente acompanhada por um esforço sério no campo do planeamento familiar. Aceitar da medicina apenas os benefícios que vão ao encontro de morais de outros tempos porque adaptadas apenas a civilizações historicamente ultrapassadas é um puro e absurdo genocídio à vista! Por outro lado, o princípio natalista tomado como mandamento absoluto pode facilmente ser posto em causa pela sua própria lógica do crescei e multiplicai-vos sem qualquer forma de desperdício. Seria de pensar em alargar a óvulos e espermatozóides o direito a toda e qualquer fecundação fértil e a obrigação da reprodução à juventude logo no início da idade fértil?! Tenha-se juízo!
PESSOA OU FETO HUMANO
Por outro lado há que colocar a questão do aborto na esfera jurídica e verificar qual é o lugar que o direito reserva à ética dos direitos fetais. Verificando que o código penal coloca o homicídio e o aborto na esfera dos crimes contra a pessoa é de questionar em que medida pode o feto ser considerada uma pessoa. O crime do aborto compreende-se no direito habitual como um crime contra a mãe de cujo corpo e pessoa o feto faz parte ou contra os pais ou contra as pessoas de uma comunidade de convivência mas será menos consensual considera-lo como sendo praticado contra a pessoa feto. De facto o conceito jurídico de pessoa pressupõe algo mais do que o simples conceito de ser da espécie humana ao exigir-se-lhe critérios de integração social de que os ritos de circuncisão, baptismo e registo civil são a expressão simbólica. Sem data e local de nascimento, nome e filiação é difícil conceber uma personalidade jurídica acabada. Se não houvesse hipocrisia intelectual dar-se-ia conta de que talvez seja esta a razão que torna os crimes de aborto tão impunes! Falar em direito do feto enquanto pessoa potencial não meramente virtual no plano teórico (forma de excluir os fetos infecundos presentes potencialmente nos gâmetas sexuais) seria uma boa alternativa teórica mas a evidência persistiria: pessoas potenciais não são pessoas reais nem virtuais! Além disso não será lapaliciano constatar que tanto antes de nascer como depois de morrer de pouco nos adiantam os direitos jurídicos ou morais?
ESTADO E NATALIDADE
2ª Depois de ter esclarecido a razão de ser dum questionar a semelhança do feto com o nado vivo restará ainda saber se deve ser ou não a mulher (e/ou o casal) a decidirem pelo destino duma gravidez indesejável ou se deve ser o estado a tutelar o direito potencial ao nascimento que os fetos inviáveis não têm garantido por natureza! Julgar que esta questão tem tido resposta moral clara, inequívoca e absoluta no ordenamento social e jurídico do mundo continuando a aceitar, por argumento de legítima autoridade, o direito militar e policial de matar é, como ficou dito antes, anacronismo teológico puro! Os dogmas católicos só terão a seu favor, num pais maioritariamente católica, o peso da tradição e não a do seu respeito porque, se há pecado comum e crime impune a esmo nestes países, é o do aborto.
Não devendo um estado laico substituir-se aos desígnios da divina providência fica claro que qualquer direito universal de nascer a atribuir aos feto seria usurpado às mães no plano do direito natural e aos pais no plano do direito comum. Dir-se-á que vai longe o tempo em que o direito romano outorgava ao pai o direito de vida e de morte sobre os filhos uma vez que o direito moderno decidiu chamar a si poderes tão draconianos que a eles acabou por renunciar sempre que optou pela abolição da pena de morte. Porém, tal só veio a acontecer não por favor dos estados mas por progresso cívico das nações! É moralmente previsível que um dia as sociedades acabarão por concluir ser a fecundidade um acontecimento tão raro e precioso que o direito a nascer dos fetos tenha que ser tutelado e protegido. Até lá a questão do aborto deve ser encarada com o realismo e com a sensatez que a pressão demográfica mundial exigem e com o tipo de civismo que os cidadãos investem na responsabilidade da procriação!
LEGITIMAÇÃO DOS VALORES CÍVICOS
Deverá o direito, num estado laico, seguir sempre a lógica moral sobretudo quando esta decorre de princípios eminentemente religiosos? Num estado não confessional as questões morais só podem ser elevadas a obrigações penais legítimas quando referendadas por ser esta a única forma legítima de salvaguardar a liberdade de consciência íntima sem a qual não existirá autonomia dos sujeitos. A mais elevada moral transforma-se em impiedosa prepotência quando não lhe estiver implícita a possibilidade de a escolher! Tal como o amor não se impõe também não faz sentido impor morais. De facto, o principal erro das morais clássicas foi o de aceitarem que Deus pudesse impor uma moral que os sujeitos não tivessem descoberto pelo menos na sua consciência o que levou às confissões e conversões forçadas de que a inquisição tão vilmente se orgulhou. Esta mesma lógica se encontra em todos os fanatismos religiosos, em todas as intolerância doutrinárias, xenofobias e em todos os graus de preconceitos contra costumes estrangeiros tidos como exóticos, bárbaros ou primitivos. Se os cristãos nunca se esquecessem de que a lógica essencial da sua crença reside não na caridade hipócrita mas na do amor de uns pelos outros como Deus nos amou todos compreenderíamos mais facilmente que cada época tem a moral que se esforçou por ter e cada sujeito tem direito à moral da sua escolha, com as inevitáveis consequência. Claro que são necessário princípios gerais que reduzam ao mínimo os custos dos erros das experiências individuais mas daí a teimar em dogmas eternos que a própria história sagrada desmente é ser cego por perverso gosto da escuridão!
ABORTO TÉCNICO
3º A interrupção voluntária da gravidez condicionada mesmo que não fizesse sentido à luz duma ética transcendental deveria ainda assim ser levada a referendo pelo simples facto de fazer algum sentido técnico. Ao ter ficado claro que o critério da autonomia fetal pode condicionar a forma como encaramos a semelhança dos fetos humanos com os indivíduos nascidos passa a fazer sentido a determinação técnica nas fases ante natais dessa autonomia que não é seguramente igual num feto que não sobrevirá numa incubadora (sem autonomia), que apenas sobrevirá em incubadoras (autonomia assistida) ou que sobrevirá com os riscos conhecidos dos prematuros. Ainda que sobre o ponto de vista moral não faça grande sentido a quem tenha uma postura radicalmente criminalizadora neste assunto o certo é que sob o ponto de vista penal faria sentido quanto mais não fora para efeitos de graduação das penas a aplicar.
Como homem de leis o autor deveria saber que o que há de importante tanto nos limites temporais das leis quanto no espartilho do figurino legal é precisamente a necessidade da sua clareza para efeitos da equidade e da igualdade de todos os cidadão perante a lei o que resulta menos da dedução de princípios absolutos e mais do consenso social livremente esgrimido e expresso em ambiente democrático?
Quanto se comparam os agentes profissionais envolvidos nos abortos legais com criminosos de colarinho branco ou
“crueldades impessoais, decididas à distância, de sistema e de rotina, sobretudo quando podiam ser decididas como lamentáveis necessidades operacionais,”
...depois de ter referido como exemplo os criminosos nazi, seria caso para a classe médica levar o autor à barra dos tribunais por ignominiosa difamação, se valesse a pena levar este artigo a sério! Sabendo-se que a pratica do diagnóstico pré-natal para pesquisa de mal formações está ainda longe de ser rotina e que de qualquer modo a decisão pelo aborto terapêutico é sempre dos pais, que cada caso é um caso e sempre angustiante para todos os que pessoal e personalizadamente nele se envolvem e que quem provoca o parto terapêutico pode ser o mesmo obstetra que acompanha o diagnostico, e que a fantasia descrita corresponde a cabalas conhecidas contra a prática do planeamento familiar tida por actividade esquerdizante é de facto calunia insultuosa sugerir que estes raros profissionais de saúde, quase sempre corajosos idealistas tomados pela loucura divina do amor ao próximo, possam ser comparados a criminosos nazis!
O PLANEAMENTO FAMILIAR NÃO É DE FACTO UMA SOLUÇÃO FINAL MAS É AINDA ASSIM UMA BOA SOLUÇÃO
Esta súbita defesa das vítimas dos holocaustos nazis proferidas em estilo conservador por temerosos do PREC faz-me recordar Cristo na condenação ao farisaísmo. Ai de vós escribas e fariseus porque edificais sepulcros aos profetas e adornais os túmulos dos justos dizendo: «se tivéssemos vivido no tempo dos nossos pais não teríamos sido cúmplices com eles no sangue dos profetas» (Mat 23;29).
A roda da História esmagará, cega e impiedosa, todos quantos se tentarem opor a esta embalagem infernal que os ventos de Pandora impelem. Os ventos do PREC só sossegarão quando a destruição for até ao fim.
Que horror, santo Deus, que confusão ideológica! Se alguma Pandora anda à solta por aí deve ter sido libertada pela sociedade de consumo e pela manutenção de mentalidades natalistas que desembocarão na explosão demográfica e não por quem apela para a necessidade urgente de adaptar de forma sábia os costumes aos tempos que vivemos! O mínimo de senso comum mandaria pensar que a moral é uma questão de costumes e os costumes uma questão de condições reais de vida! Quando se fala nos malefícios do desfasamento cultural dos povos em relação ao avanço da civilização não será serio considerar que tal se deve a um retrocesso na religiosidade das pessoas mas precisamente ao seu inverso: à manutenção de uma visão cultural ou religiosa do mundo desadequada às novas realidades do progresso das civilizações.
Todos os que defendem a liberdade legal do aborto fazem-no por razões éticas exigentes e tendo por objectivo precisamente o de evitar a extinção da espécie humana pela explosão demográfica e não por perversidade ou por uma paixão diabólica pelo PREC (saberá o autor que já os primeiros cristão eram acusados pelos romanos de comeram criancinhas!? A imaginação da intolerância não tem sido muita ao longo da historia!). E depois, se existisse alguém que defendesse o aborto por rotina só poderia ser insensato ou abortador clandestino! Porém nem estes últimos o farão nunca porque são os únicos a ganharem com a ilegalidade do aborto tal como são os traficantes de droga os que com mais convicção defendem a penalização das mesmas tal como, de uma maneira geral, são os que enriquecem com a desonestidade os que mais hipocritamente defendem a permanência do puritanismo. O perigo das soluções finais podem vir tanto da direita como da esquerda mas a pior de todas arrisca-se a ser a que resultar da imprevidência democrática por incapacidade para gerir com inteligência e coragem todos os riscos ecológicos implícitos na utilização da ciência e na tecnologia moderna.
CONCLUSÃO E HOMENAGEM A C. ROGERS
Convicto de que a única moral nobre é aquela que apela para a autenticidade, compreensão e congruência de pessoas inteligentes e livres segundo as propostas de Carl Rogers termino defendendo que em princípio o aborto não é conveniente nem recomendável mas que, devendo ser permitido aos cidadãos não somente o direito de educarem os seus filhos como também o poder de decidirem dos limites da sua capacidade para se responsabilizarem pelo fardo que a educação dos filhos naturalmente comporta, deverá aos cidadãos ser permitido o recurso livre ao Planeamento Familiar e ao diagnóstico precoce pré-natal. No caso específico da interrupção voluntária da gravidez, o estado não deverá exigir dos cidadãos mais sacrifícios sociais do que os necessários nem mais do que aqueles que a nação pode e queira dar.
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